Outros papos
quinta-feira, 27 de setembro de 2012
Moacyr Félix
O Poema
Ou se vive por inteiro
ou pela metade a gente
escreve a vida
que não viveu.
E o papel em branco então serve
como serve ao prisioneiro
a parede branca do cárcere.
O que não foi é o ser que é
no poema, esse ato mágico
de uma chama que não se vê
tanto mais quanto ela queima
no ar de uma cela vazia
o homem que é posto em pé
sobre os mortos do seu dia.
Porque
Porque a poesia nunca está na soma
e sim no tempo que é maior que o tempo
da vida medida entre doze números,
o poeta está solto por dentro dos relógios
e movimenta ponteiros que ninguém vê e onde
o incomensurável brinca
com os raios de sol ou as finas gotas de chuva
sobre o passar das árvores e dos animais e dos homens.
O poeta está livre por dentro dos relógios
e o seu coração ali bate e bate e bate
lado a lado com todas as engrenagens do mundo.
O mistério, no entanto, é o jardineiro do seu sangue
exilado entre palavras que nunca foram proferidas.
Porque a poesia nunca está na soma
o poema tem um tempo próprio e voa
nas raízes do canto em que se asila
o silêncio ou a mais funda esperança
do primeiro homem que sonhou
pendurar uma estrela-d'alva nos roteiros
da infinita sombra em que as horas decidem
nascimento e morte no tempo do homem.
Porque a poesia nunca está na soma
o poeta está livre por dentro dos relógios.
Assim como o morto em suas memórias.
Sentimento Clássico
Pisados, os olhos com que pisaste
a soleira escura de minha face;
e por mais pontes que entre nós lançasse,
ao que de fato sou nunca chegaste.
Que distâncias lamento, e que contraste !
Gravando em cada ser o amor que nasce
não encontrei o amor que me encontrasse:
amaram sem me ver, como me amaste.
Tinha os olhos tristes como eu tenho,
e o pranto que eu te trouxe de onde venho
é o mesmo que te espera adonde vais.
Se a mesma sóbria dor em tudo pomos,
não vês o que me calo. E assim nós somos
o que não somos nem seremos mais.
Auto-Retrato
Certa vez, numa aventura estranha
fugi
do estreito túmulo em que me estorcia
para uma ampliação sem fim.
Quando voltei
e senti, de novo, ferindo-me, o peso dos grilhões,
então não mais sabia quem eu era.
E nunca mais soube quem eu sou.
Talvez a sombra triste de um sonho de poeta.
Talvez a misteriosa alma de uma estrela
a guardar ainda no profundo cerne
a ilógica saudade de um passado astral.
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