Peliano costuma brincar que a poes-ia e foram os poetas que a trouxeram de volta! Uma de suas invenções mais ricas é conseguir por em palavras lirismos maravilhosos, aqueles que percebemos de repente e temos a impressão que não vamos conseguir exprimi-los. Exemplos: de Manoel de Barros -"Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura. De tarde o deserto já estava em nós"; de Ernesto Sabato - "Sólo quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para ... recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido"; de Thiago de Mello - "Faz escuro mas eu canto"; de Helen Keller - "Nunca se deve engatinhar quando o impulso é voar"; de Millôr Fernandes - "Sim, do mundo nada se leva. Mas é formidável ter uma porção de coisas a que dizer adeus". É como teria exclamado Michelangelo que não fora ele quem esculpiu Davi, pois este já estava pronto dentro da pedra, Michelangelo apenas tirara-o de lá. Então, para Peliano, o lirismo é quando nos abraça o mundo fora de nós, cochicha seu mistério em nossos ouvidos e o pegamos com as mãos da poesia em seus muitos dedos de expressão.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Adriana Zapparoli


zênite

furor uterino

numa eletrificação rubra
abismo acolchoado
de trama zibelina
exposta

segredo
um ponto
zênite

num momento

roer

a unha telúrica
do tempo

saltar
para dentro
da vulva

no movimento
da válvula tricúspide

tugúrio

o tule abafa
o trilo da úvula

no dedo o gosto da uva úmida

 
adultério

aerobionte
dialética morfologia
estranha monogamia

rubro cântico

figurativo descanso
uma estrutura rubra
um olho-de-gato
equivocado
refletindo luz


intuitiva a poesia


num escuro
duma estrada
mal sinalizada



quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Nei Duclós


Chave

Do planeta gelo tens a chave
onde me confinas, alma rude
do carinho que dou és ataúde
devolves paralelas e quadrados

Se fosse apenas a secura
de um coração que não reage
mas é corrente sem futuro
pacto de solidão para viagem

Deveria escapar dessa armadilha
que acaba de vez com minha saúde
mas fico na esperança da aspirina

O mais duro é que te comprazes
em dizer não quando digo abre
Perdes a chance de ser só doçura

Sombra

Sinto medo do amor, jogo de luzes
que leva teus bens, arca de breu
flores confusas em vaso de nuvem
presentes inúteis, roupas sem uso

Pura solidão, coração que tortura
Perda que nunca refaz o caminho
Muda sua vida ou joga no fundo?
Ramo de espinho em som submisso

Tremo de dor quando te aproximas
pois sei que esse abraço acha seu fim
no rastro que deixo na dobra do corpo

Eu erro por vício, sem haver sintonia
entre tua glória e o meu desconforto
na sombra do lado onde vivo sozinho

Pólvora

Não tenho piedade, coração solitário
meu trato contigo não inclui recato
faço o serviço, jogamos no mato
de comum acordo, couro de gata

Preferes assim, flor confiscada
evitas a dor, tentadora do hábito
em vez do rodízio, rotina de valsa
enlaças o tango, rasgo de aposta

Propões desacato e eu me convenço
só que no fundo conheço tua lábia
é pura armadilha em cima do escravo

És dona do mundo e nada te importa
sabes que sou o mel que devotas
dentro de ti, inventora da pólvora

Corrente
 

Vai embora já que não se segura
prefere distância ao som da corrente
me quer muito mas não me procura
como entender o apronto da fuga?

Quer evitar o assombro do grude
provocado pela grossa doçura
aos sair do sério em tarde impura
Sumiu, pois você bem se conhece

Me exclui como se eu fosse bicho
mantém fechada a jaula da impostura
onde me cerco de ansiedade e lixo

Rosno na grade sem alimentar o vício
pelo vestido longo que rasguei um dia
Me dá gastura pois fui só o exercício

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Helena Kolody



Saudade

Há vinte anos não ponho nos teus olhos,
numa carícia azul, o meu olhar.
Nunca mais tuas mãos fortes e esguias,
aquecerão as minhas.
A saudade, esta aranha tecedeira,
arma, de novo, o nhanduti do sonho
com o mesmo fio de outrora.
E a alma se enreda na trama sutil,
como se fosse agora.

Para a appassionata

Vivo como se dormisse
A sonhar contigo
Para sempre.

O mundo é um rumor longínquo
De mar em ressaca
A quebrar-se nas amuradas
Do meu castelo sem pontes.

Luz do amor eterno

Raio de luz a transpassar-me,
É Deus que te ama em meu amor.

E te ama dum amor tão alto e tão profundo
Que não quis encerrá-lo
Na argila perecível deste mundo.

Plasmou-me em carne, apenas
Para formar o coração.
E foi preciso transformar em asas
Os braços carinhosos.

Mas no tempo imarcescível
Da ressurreição,
Nossas almas,
Duas centelhas puras, palpitarão unidas
No mesmo Eterno Amor.

(sem nome)

Quando leio teu nome
bóiam as letras
nas minhas lágrimas.

Mendiga,
busco o vestígio de teu olhar
nos olhos que te fitaram.


Quando leio teu nome
as letras cintilam, tremem:
estrelas boiando em lágrimas.

sábado, 13 de outubro de 2012

Virna Teixeira



Calçada

pequeno, 0
frágil

corpo

soluça



vermelha,

a flor

entre os

dedos





Portrait

os olhos dele
uma gaiola



onde um 

pássaro



às vezes,

canta


Distância

um telefonema de
três minutos



depois,

o silêncio



do outro lado

da linha 




Lisboa


os pés

caminham,

molhados



entre óculos

analíticos e

gabardinas



pela ladeira

a chuva

escoa



saudade



mágoas

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Maria Lúcia Dal Farra



Alcachofra


Não é em altura que seu arbusto
se ombreia com o pinheiro:
é pela fruta.
Íntima amiga da geometria,
do pinho tão só se distancia
pela recusa à agreste armadura.
Nenhum lampejo de indiferença
machuca-lhe a vestimenta:
antes a luz emprega no fabrico da alma
tenra (que lateja),
parente do alegre bem-me-quer,
do espelhante girassol.
Pertença da floricultura e da boa
mesa, ornamenta o paladar
com a lembrança das nascentes:
não são de lâmina as escamas,
mas (degustáveis) dádivas mediterrâneas
dispostas no coração em tranca
 Apenas pequenas setas mantém
(em íntima contenda)
a provocar torneios entre língua e dentes.
– Cota de cavaleiro andante,
em que terna demanda atuas?

Silêncio de bronze
sobre as teias de aranha das pupilas.
Nada palpita no rosto tátil _
nem mesmo um poro.
Deslizo pela superfície imberbe
a gana de eriçá-la:
mas (munida apenas da arremetida suicida do touro)
sua mudez desarma o esforço.

Urna cerrada como o sol,
fui, foste, fomos,
e tudo ficou retido na divisa
(no escudo)
na nitidez desse rosto acuado
- dessa carranca com que hoje enfrento os mares.


Arte

ao Francisco José

Não distingo o que queres
e nem triunfo sobre
o enigma que nos atrai
(assim dessemelhantes).
Mas se adivinho o que há dentro do teu cenho
e se (acaso)
empreendo o que (querendo) não fazes por
consumar -
ganho (em troca)
a solidão patética de quem erra
por acertar.

O amor é isso:
cisco que tolda a vista
tão só pra se enxergar.


Ao leitor, meu canibal inquieto

Cada palavra
(aqui)
se obstina em silêncio.

Contigo devoro os frutos da noite:
lua caiada em agonia
alguma chuva esparsa do lado boreal
poeira de estrelas profanando
o negro.

Só nossos dentes
brilham