Peliano costuma brincar que a poes-ia e foram os poetas que a trouxeram de volta! Uma de suas invenções mais ricas é conseguir por em palavras lirismos maravilhosos, aqueles que percebemos de repente e temos a impressão que não vamos conseguir exprimi-los. Exemplos: de Manoel de Barros -"Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura. De tarde o deserto já estava em nós"; de Ernesto Sabato - "Sólo quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para ... recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido"; de Thiago de Mello - "Faz escuro mas eu canto"; de Helen Keller - "Nunca se deve engatinhar quando o impulso é voar"; de Millôr Fernandes - "Sim, do mundo nada se leva. Mas é formidável ter uma porção de coisas a que dizer adeus". É como teria exclamado Michelangelo que não fora ele quem esculpiu Davi, pois este já estava pronto dentro da pedra, Michelangelo apenas tirara-o de lá. Então, para Peliano, o lirismo é quando nos abraça o mundo fora de nós, cochicha seu mistério em nossos ouvidos e o pegamos com as mãos da poesia em seus muitos dedos de expressão.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Adão Ventura


Encantamento

Você agora
é arco-íris
sol
de Três Barras
cristal
de São Gonçalo do Rio das Pedras
- Um caminhão transporta estrelas
do Pico do Itambé
- Um raio corta de fora a fora
os céus do Serro

Faça sol ou faça tempestade

faça sol ou faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.

faça sol ou faça tempestade
meu corpo é cercado
por estes muros altos,
— currais
onde ainda se coagula
o sangue dos escravos.

faça sol
ou faça tempestade,
meu corpo é fechado
por esta pele negra.
Eu, pássaro preto

eu,
pássaro preto,
cicatrizo
queimaduras de ferro em brasa,
fecho o corpo de escravo fugido
e
monto guarda
na porta dos quilombos.


Panorâmicas Drumonndianas

Se esta consagração
de um ungir e lembranças
desata o menino antigo
já emoldurado em paredes.
Se estas sombras/cauê
montanhas de fracos giz
- peripécias em remotas
fotografias já tristes.
Se este corpo oitentão
de um Drummond ou mesmo Carlos
é sinal que no coração
ainda resta muitos talos.
voltar

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Magui Nólia


âmbar

âmbar ambas
um braço de tarde se arremete
um braço de noite se atreve
um braço de mar se intromete

âmbar ambas
a vida pára na imagem
a vida se esparrama na imagem
o olhar se inventa na imagem

âmbar ambas
ondas se propagam em cores
ondas se compõem em espelhos
cristais se enlaçam nas ondas

âmbar ambas
a gaivota traz o horizonte
a lua voa em noite cheia
o jequitibá observa na ponta dos pés

âmbar ambas
a realidade é densa
continua e não termina no gesto

atrás da manhã

a manhã estava nas primeiras gavetas do dia
vestida de cores ainda por fazer
e panos cobertos de desuso

a manhã estava era para ficar posta de lado
e eu para dela sair sem me servir
da roupa de atravessar horas a fio
e desbravar caminhos amontoados de desertos

eu não era para ficar à espreita
feito bicho anoitecido

era para varar o escuro
atrás da manhã preferida
de um sonho ainda não acabado de resistir

era para subir as paredes do dia
com as mãos aquinhoadas
de horas feitas de luzes e asas
braços da tarde

um sol retardatário
soberano, mas esmaecido, grisalho,
joga-se aos braços da tarde
estica as pernas nas nuvens
cobertas de suor, andaduras e barro
e se põe exausto, sombreado
lá no fundo de meus olhos

calor de chão
um rio de cavalos
galopa e espalma poeiras d’água
atravessa correntes de sol a pino
borbulhadas por calor de chão
e levanta vôo cego de terra batida
para tirar de pedras, sombras e pedaços de troncos
outro rio coalhado de silêncio
já seco na memória

Francisco Otaviano de Almeida


Recordações

Oh! se te amei! Toda a manhã da vida
Gastei-a em sonhos que de ti falavam!
Nas estrelas do céu via teu rosto,
Ouvia-te nas brisas que passavam:
Oh! se te amei! Do fundo de minh’alma
Imenso, eterno amor te consagrei...
Era um viver em cisma de futuro!
Mulher! oh! se te amei!
Quando um sorriso os lábios te roçava,
Meu Deus! que entusiasmo que sentia!
Láurea coroa de virente rama
Inglório bardo, a fronte me cingia;
À estrela alva, às nuvens do Ocidente,
Em meiga voz teu nome confiei.
Estrela e nuvens bem no seio o guardam;
Mulher! oh! se te amei!
Oh! se te amei! As lágrimas vertidas,
Alta noite por ti; atroz tortura
Do desespero d’alma, e além, no tempo,
Uma vida sumir-se na loucura...
Nem aragem, nem sol, nem céu, nem flores,
Nem a sombra das glórias que sonhei...
Tudo desfez-se em sonhos e quimeras...
Mulher! oh! se te amei!


Morrer...Dormir...

Morrer .. dormir .. não mais! Termina a vida
E com ela terminam nossas dores:
Um punhado de terra, algumas flores,
E às vezes uma lágrima fingida!

Sim! minha morte não será sentida;
Não deixo amigos, e nem tive amores!
Ou, se os tive, mostraram-se traidores,
Algozes vis de uma alma consumida.

Tudo é podre no mundo. Que me importa
Que ele amanhã se esb'roe e que desabe,
Se a natureza para mim é morta!

É tempo já que o meu exílio acabe,
Vem, pois, ó Morte, ao Nada me transporta!
Morrer... dormir... talvez sonhar... quem sabe?



Ilusões de vida

Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu,
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem - não foi homem,
Só passou pela vida - não viveu.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Francisco Inácio Peixoto



Sesta

De flanco, encolhida como
um feto retornado ao útero,
as ancas cheias são
entre tronco e coxas
leiras que os olhos rasgam
Presto mas sutil
(não lhe desmancho o sono)
fundo-me, isopétalo, na fôrma
do corpo de ébano.
Inconsúteis nos quedamos e indivisos.
Em breve também emigro
entre sonho e sono
para aquém da vida.


Dois bares giram enlaçados


As amarguras se encontravam,
somos três pensando em ti.

Eu desenho o teu retrato
no pano sujo e rasgado
que cobre a mesa do bar.

Os músicos derrotados
tocam coisas muito tristes.
Se a noite não fosse aqui,
talvez fizessem chorar.

A lembrança vai crescendo
com as rodelas do chope,
Se derrama pelas mesas,
Sobre as mulheres sem dentes,
Sobre os homens sem amor.

E eles e elas giram,
giram as flores dos cabelos,
palavrões e giram os copos
e no Bar 49,
em torno de teu retrato

Gira, gira, gira tudo,
gira em torno do gigante,
que me acarinha e sorri.
Gira o bar e gira a Lapa,
gira orquestra, gira a vida,
giragirando por ti.

Em São Paulo, havia noites
e tu ficavas no bar.
Luís Saia e os rapazes
conversadinho contigo,
eu ficando a te escutar.

Será triste o Franciscano,
será deserto sem ti.
Osvaldo, Iglesias, Fernando,
Nunca mais beber ali.

Oto, Carlos, Pelegrino,
Dantas Motta, Rubião
Figueiró, Paulo e Jair,

Clemente, Ernande, Bueno
Luiz Saia, irmãos pequenos,
Não mais beber ali não

Joelho

Orografia mínima
entre perna e coxa.
Um dedo basta
para sentir-lhe as pequenas dunas
as ligeiras covas
onde o tato se compraz.
Se a mão espalma em concha
a gelatina da carne
um bicho nela oculto freme
titila
explodindo em cio.


Pedreira

Dependurados no espaço
Eles ficam ali o dia inteiro
Arrancando faíscas
Furando buracos na pedreira enorme
que reflete como um espelho
As suas sombras primitivas.
À tarde ouve-se um estrondo
E o eco repete a gargalhada das pedras
Que vieram rolando da montanha.

Os homens de pele tostada
Descem então dos seus esconderijos
E caminham pras suas casas
Vagarosamente decepcionados
Segurando nas mãos cheias de calos
As ferramentas com que procuram
Há uma porção de anos
O segredo que lhes dê
Uma nova revelação da vida...


 

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Pedro Kilkerry


Sob os Ramos

É no Estio. A alma, aqui, vai-me sonora,
No meu cavalo — sob a loira poeira
Que chove o sol — e vai-me a vida inteira
No meu cavalo, pela estrada afora.

Ai! desta em que te escrevo alta mangueira
Sob a copada verde a gente mora.
E em vindo a noite, acende-se a fogueira
Que se fez cinza de fogueira agora.

Passa-me a vida pelo campo... E a vida
Levo-a cantando, pássaros no seio,
Qual se os levasse a minha mocidade...

Cada ilusão floresce renascida;
Flora, renasces ao primeiro anseio
Do teu amor... nas asas da Saudade!


É o silêncio

É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa.
Olha-me a estante em cada livro que olha.
E a luz n’algum volume sobre a mesa ...
Mas o sangue da luz em cada folha.

Não sei se é mesmo a minha mão que molha
a pena, ou mesmo o instinto que a tem presa.
Penso um presente, um passado. E enfolha
A natureza tua natureza.
Mas é um bulir das coisas... Comovido
Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido.
Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse teu passo,
Asa que o ouvido anima...
E a câmara muda. E a sala muda, muda...
Afonamente rufa. A asa da rima
Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda
Novo, um fantasma ao som que se aproxima.
Cresce-me a estante, como quem sacuda
um pesadelo de papéis acima...

................................................................................E abro a janela. Ainda a lua esfia
últimas notas trêmulas... O dia
Tarde florescerá pela montanha.

E oh! minha amada, o sentimento é cego...
Vês? Colaboram na saudade a aranha,
Patas de um gato e asas de um morcego.



Floresta Morta

Por que, à luz de um sol de primavera,
Urna floresta morta? Um passarinho
Cruzou, fugindo-a, o seio que lhe dera
Abrigo e pouso e que lhe guarda o ninho.

Nem vale, agora, a mesma vida, que era
Como a doçura quente de um carinho,
E onde flores abriram, vai a fera
— Vidrado o olhar — lá vai pelo caminho.

Ah! quanto dói o vê-la, aqui, Setembro,
Inda banhada pela mesma vida!
Floresta morta a mesma cousa lembro;

Sob outro céu assim, que pouco importa,
Abrigo à fera, mas, da ave fugida,
Há no meu peito urna floresta morta.

Taça

Aquela taça de metal que, um dia,
À Laura, um dia assim, lhe oferecera,
Entre relevos delicados de hera,
"Saudade" em letras de rubis trazia.

E era um riso de amor e de poesia
Em cada riso ou flor da primavera...
E Laura, a um canto, cruel, por que a esquecera,
Laura que soluçou, porque eu partia?

Anos derivam. De remorsos presa
Não é que vai, acaso, à soledade
Da abandonada... Vai por fantasia.

Mas, como um choro, vê, vê com surpresa,
Desmancharem-se as letras da "Saudade"
Que aquela taça de metal trazia.

Berg A. Mota


meia lua em lua e meia

um com um faz onze
onze com onze
um jogo de futebol

a lua se expõe e atiça
mas não pega um bronze
roda e foge da liça
não chega e se dá ao sol

agora ou agora

sim, não é por nada não
é por muito ou por pouco
não, não diga nada não
ou ponho ou acabo louco

pequenas mortes

um beijo achado morto
estendido em minha boca
abatido sem chance de defesa
pelo gelo seco espumado de seus lábios

ponto de vista à vista do ponto

o gato leva em si o segredo do silêncio
o cachorro nunca deixa por menos
conta e mostra a todos o latifúndio
late fundo, forte e tênsil

a centopeia não está nem aí

ponto final

pelo não, pelo sim
deu tudo errado
não me venhas assim
nem assado
vá, viva sem mim
fundo falso furado

Giovani Baffô


Amor



com
fusão


I.


Em casa de menino de rua,
o último a dormir apaga a lua
 
 
Decoração
 
 
Amor porque você não muda
a sua cama de lugar
 
 
Pavoneando
 
 
De mim,
não tenham pena
 

Oriente-se


Usar burca é cultura
ou
Hábito.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Bruno Tolentino

Noturno

Não sou o que te quer. Sou o que desce
a ti, veia por veia, e se derrama
à cata de si mesmo e do que é chama
e em cinza se reúne e se arrefece.
Anoitece contigo. E me anoitece
o lume do que é findo e me reclama.
Abro as mãos no obscuro. Toco a trama
que lacuna a lacuna amor se tece.
Repousa em ti o espanto que em mim dói,
norturno. E te revolvo. E estás pousada,
pomba de pura sombra que me rói.
E mordo teu silêncio corrosivo,
chupo o que flui, amor, sei que estou vivo
e sou teu salto em mim, suspenso em nada.


O espírito da letra

Ao pé da letra agora, em minha vida
há a morte e uma mulher... E a letra dela,
a primeira, me busca e me martela
ouvido adentro a mesma despedida

outra vez e outra vez, sempre espremida
entre as vogais do amor... Mas como vê-la
sem exumar uma vez mais a estrela
que há anos-luz se esbate sem saída,

sem prazo de morrer na luz que treme?!
O mostro que eu matei deixou-me a marca
suas pernas abertas ante a Parca

aparecem-me em tudo: é a letra M
a da Medusa que eu amei, a barca
sem amarras, sem remos e sem leme...


I.

Porque o amor não entende
que tudo quer passar,
nunca, nunca consente,
a nada o seu lugar.

Planta presa, de alpendre,
sacudindo no ar
braços impenitentes,
tenazes, em lugar

de aceitar que não prende
nada, o amor quer dar
apaixonadamente
laços à luz solar

e é noite de repente.


II.

Se ainda te iluminar
com um olhar novamente,
sei que não vais estar
tão perto; a alma entende,

o corpo quer gritar!
Porque o olhar apreende
mais do que alcança dar,
à distância, na mente,

de que vale um olhar
com a noite pela frente?
Essa noite que tende
a unir e separar

inapelavelmente...

Lu Menezes

Molde para o silêncio
 
À beira da piscina vazia
posicionadas de certo modo
três cadeiras brancas vazias
de certo modo se entreouvem
se entrefalam e entressilenciam.

 
Tsunami e vizinhança
 
Então , a mulher e a criança
seguiram uma serpente que nadou para terra firme
e conseguiram se salvar.

― A mulher
era só certa vizinha a quem, antes de morrer, a mãe
confiara a criança.

A serpente
terá sido, de repente, uma espécie de vizinha também.
― Vizinha de outra espécie.

 
Cola com anticolas
 
O make me an angle!
você aos céus implora
na cola de Dylan Thomas rogando
O make me a mask!

e na branca anticola
daquela artista paulista escovando
os dentes até não mais se ver
um pingo de rosto atrás
da máscara de pasta...

e na negra,
da cineasta belga engraxando
as botas e depois
as pernas e depois
incinerando a habitação

– Do Cosmo ao subsolo
na anticola vermelha de Cildo,
O make me an angle!
– insistes

na frente do espelho
passando o batom sem ultrapassar
limites... sem se desviar... respeitando
o contorno labial, o entorno social;
exorcizando
todo extra-artístico risco de escândalo
que algum milimétrico
impulso inoportuno possa criar
 
Distâncias incomensuráveis II
 
Grã-estrelas quebradiças
esfarelam-se na noite armazenária de um céu
com dobradiças

Muito e pouco
distam das estrelas
e da lua terra-a-terra de strass
que sobre a mesa de um camelô o sol mela

“A BBC sonhava com tudo o que eu – mas eu
só comigo sonhava!” gritou o Souza pelo oniaudiente
megafone estrelado instalado em sua mente

Pela TV se vê
que para atrair os índios, um espelho
foi deixado brilhando no matagal

Mas quem afasta
verdes feixes de elétrons
e penetra no vibrante capinzal distante

– sou eu –

índio trânsfuga que acha
a trânsfuga estrela no chão

Pio Vargas


Despertáculo

Es­tou pron­to
pa­ra a guer­ra que en­con­tro
quan­do acor­do:
bo­tei vi­gia nos sen­ti­dos
e ilu­di com com­pri­mi­dos
ou­tros se­res a meu bor­do.
Aban­do­nei o ví­cio
de es­tar sem­pre
a so­le­trar ru­í­nas,
dei li­ber­da­de a meus de­ten­tos
mi­nha pres­sa di­lu­iu nos pas­sos len­tos
e ras­guei
meu ca­len­dá­rio de ro­ti­nas.
In­ver­ti a or­dem.
Já não saio por aí
a de­vo­rar com­pro­mis­sos,
to­mei pos­se no go­ver­no de mim mes­mo
e der­ro­tei os meus omis­sos.
Ven­ci a ba­ta­lhas
de ter que es­tar sem­pre por per­to,
às ve­zes voo pa­ra den­tro
do meu so­nho a céu aber­to.
Es­tou pron­to:
eu já con­cor­do
com a guer­ra que en­con­tro
quan­do acor­do.


Os sons do ofício

É porque recolho o vário
no aviário das vértebras
e me há um silo de células
e me há um quase-aquário,
que o poema se me chega,
estuário.
Que me importa
a sina jugular das fases,
a vida conjugal das frases
e o semblante cínico
das fezes,
se não faço poemas
como quem defende teses.
Faço poemas
para que passem os dias
e pascem os rebanhos
e os oceanos pasmem
ante o naufrágio
de todas as datas
no calendário-lanho.
Ou seja, faço-os
como quem viceja
os laços do arremesso
como quem vislumbra
silêncio nos entulhos
e aprendeu a estrutura ideal
para montar barulhos
sob a língua mais banal.
Faço-os
como quem lambe oásis no planalto,
deixado pelas bases
de um simples sobressalto.
É como se o ego
coubesse inteiro
na determinação de um prego
que me fixa exílios sob a carne
mas que também aciona
os gatilhos do alarme.


Poema 999 (ou: concepção tumular pra que ninguém alegue ignorância):

Quando eu morrer
escrevam no meu túmulo:
aqui dorme pio
que era poeta nas horas vagas.
O que distanciou de tudo
pra continuar mudo
com suas amarras

Aqui dorme alguém
que era de todos
e pertenceu a ninguém
que imaginava muito
mas só tinha um corpo
que casualmente se tem
que fazia poemas
só para esquecer os dilemas
do que era um e quis ser cem.

Pensando bem
escrevam mais:
aqui dorme pio
o que em sendo um
foi quase mil.


Velho

acho que valho
a idade dos espelhos
o tempero dos sais
a metafísica do cais
e mais
um aviário de naus
que pediu concordatas
e passou pelas datas
usuário do caos.


José Carlos Peliano



a poesia de Cora Coralina
 
a poesia de Cora
nunca descora
não evapora
nem vai embora
 
viveu e deu a ela
por asa forte e singela
o ardor de sua lida
suave, densa, querida
na cor de sua vida
não com anilina
mas com sua Coralina


terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Marcos Caiado


1.
não há que ser
diferente:
o melhor poema
continua
na gente.
2.
sim, eu te amo
pela delicadeza que me negaste
e pelos belos olhos azuis
que não tens.
amo-te porque nada mudaste em minha vida
quando podias
(e eu pedia).

sim, eu te amo
porque me relegaste
à condição de traste
nesse achados & perdidos
da rua dos mascates número zero
à espera de um encontro:
ponto.

te amo
porque jamais compreendeste
o que é amar
por nunca teres me reparado de fato
(ou acordado algum afeto);
por fugires no terceiro ato
levando contigo a cantiga
e o teatro.

amo-te
com a volúpia da letra erre
que sonha tomar o lugar do hífen
e revelar o teu legado
no próximo verso:
amo-te!
dá meia-volta
e volta.
volta ao início

3.
quando você desaparece,
até o travesseiro
vira precipício.

4. Babau

você me deixou com a cabeça moída
e com a vida miúda.
a dor nao passa
a página não muda:
um resto de mim
sem prumo e sem colo
assassinando sóis
no underground.
matando os faróis
de cada sinal.

você me deixou porteira fechada.
no frio da madrugada
passando mal.
você me deixou... agora babau.
eu estou na u.t.i
com o coração a prêmio
e cada vez q vc vem me visitar, baby,
é pra desligar o balão de oxigênio.
eu estou na u.t.i
e cada vez que você vem
é pra aplicar
uma dose a mais de veneno.

Maria Ângela Alvim


1.
Estar ser auxílio. Pensa
só estar sem movimento
de amor, de medo, querença.

E ficar, deixando o espaço
de lembrança, alheamento
de mim, entre idéia e passo.

E durar, quase num sonho
de si mesmo descoberto
conter-me no meu tamanho
de ser tudo e ser deserto.

Permanecer - e me oponho
no tempo, domínio incerto.
Espero? Não. Ah!, que estranho
estar sonhando tão perto.


2.
Os finos dedos do vento
contaram os meus cabelos.
Meu corpo é o violino
nos leves dedos do vento.


3.
Há uma rosa caída
Morta
Há uma rosa caída
Bela
Há uma rosa caída
Rosa

4. Vitória de Samotrácia
 
Não aqui, - além existes. Teu vôo
demais amplo na extensão dos olhos
se tão curto olhar,
em tempo de pausa acompanhamos.

Mito
anjo
graça
alma de dança
teu corpo era paixão na pedra.

... Param os passos,
espraia-se o mar
onde arrebatas as vestes do vento,
ó vortigem de ser e de estar!
 
 
 

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Sebastião Uchoa Leite


Duas camas

O ar cotidiano noturno
Envolve-me em fios
Sonho com os subúrbios de Manhattan
Estremunhado e úmido
Desço os degraus às 7
Vou para o sofá baixo
Janelas para o sol matinal
"Ilumino-me de imenso"
Sem o anti-sol
Da alto cama isolada

Insônia Respiratória


Antes nunca
Ouvira o invisível poema
Do respirar: não
Ouvira nada
Só o silêncio dos órgãos
Mas o segredo da vida
Era isso
Quando ninguém
Se lembra do corpo
Que de fato
É feito da mesma matéria
Do sono


Vigília sonora

Aplicou-me um indutor
Na veia
Embora eu pedisse água
Veia crê em soníferos?
Insônia eletrônica
A noite toda
Uma insônia bípica
"Ao menos não me assassinaram"
Cintilei às cinco
No êxtase lúcido da vigília


Certa luz

Ela inclinou-se junto a mim
— Todo em fios —
E disse: "O que o salvou
Foi uma luz
Dentro de você".
Touché! Sorri pedido
"Desconfio dessa luz"
Com a língua bífida


quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

José Carlos Peliano


 
 
Adeus a Oscar Niemeyer
 
A arquitetura em Oscar
virou arquitextura
onde a luz se deitava
a sombra se acostumava
a vida se admirava
Oscar livrou os traços
das curvas e da arte
das retas aprisionadas
no concreto e na falta de graça
 
Epitáfio
 
Pouca a arquitetura
que não chega à arquitextura
das obras de Oscar
que só ele, os pássaros,
as nuvens, as ondas e os ventos
sabiam se aventurar.


segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Raul Zurita



Las playas de Chile II

Miren las playas de Chile
Hasta el polvo se ilumina
en esos parajes de fiesta

i. Las playas de Chile son una fiesta en sus ojos


ii. Por eso hasta el polvo que los cubría se hacía luz
... en sus miradas benditos lavándose las mortajas


iii. Por eso la patria resplandecía levantándose desde el
... polvo como una irradiada en las playas de sus ojos
... relucientes para que hasta los sepultos puedan ver
... la costa en que se festejaron cantando esos dichosos

Las utopias

i. Todo el desierto pudo ser Notre-Dame pero fue el
... desierto de Chile

ii. Todas las playas pudieron ser Chartres pero sólo
... fueron las playas de Chile

iii. Chile entero pudo ser Nuestra Señora de Santiago
... pero áridos estos paisajes no fueron sino los
... evanescentes paisajes chilenos

Donde los habitantes de Chile pudieron no ser los habitantes de
Chile sino un Ruego que les fuera ascendiendo hasta copar el
cielo que miraron... dulces... ruborosos... transparentándose como
si nadie los hubiera fijado en sus miradas

iv. Porque el cielo pudo no ser el cielo sino ellos
... mismos... celestes... cubriendo como si nada los áridos
... paisajes que veían

v. Esos habrían sido así los dulces habitantes de Chile
... silenciosos ... agachados... poblándose a sí mismos sobre
... las capillas de su Ruego

vi. Ellos mismos podrían haber sido entonces las pobladas
... capillas de Chile

Donde Chile no pudo no ser el paisaje de Chile pero sí el cielo azul
que miraron y los paisajes habrían sido entonces un Ruego sin fin
que se les escapa de los labios ... largo ... como un soplo... de toda
la patria haciendo un amor que les poblara las alturas

vii. Chile será entonces un amor poblándonos las alturas

viii. Hasta los ciegos verán allí el jubiloso ascender de
... su Ruego

ix. Silenciosos... todos veremos entonces el firmamento
... entero levantarse... límpido... iluminado... como una
... playa tendiéndonos el amor constelado de la patria

Y volvimos a ver las estrellas

Acurrucados unos junto a otros contra el fondo del bote
de pronto me pareció que la tempestad, la noche y yo éramos sólo uno
y que sobreviviríamos
porque es el Universo entero el que sobrevive
Sólo fue un instante, porque luego la tormenta nuevamente
estalló en mi cabeza y el miedo creció
hasta que del otro mundo me esfumaron el alma
Sólo fue un raro instante, pero aunque se me fuese la vida
¡Yo nunca me olvidaría de él!

La marcha de las cordilleras

i. Y allí comenzaron a moverse las montañas

ii. Estremecidas y blancas ... ah sí blancas son las heladas
... cumbres de los Andes

iii. Desligándose unas de otras igual que heridas que se
... fueran abriendo ... poco a poco... hasta que ni la nieve
... las curara

iv. Y entonces... erguidas... como si un pensamiento las
... moviese ... desde los mismos nevados ... desde las mismas
... piedras... desde los mismos vacíos... comenzaron su
... marcha sin ley las impresionantes cordilleras de Chile

 

Décio Pignatari














terça-feira, 27 de novembro de 2012

Mário Chamie

milho e um céu

Plantio
 
Cava,
então descansa.
Enxada; fio de corte corre o braço
de cima
e marca: mês, mês de sonda.
Cova.

Joga,
então não pensa.
Semente; grão de poda larga a palma
de lado
e seca; rês, rês de malha.
Cava.

Calca
e não relembra.
Demência; mão de louco planta o vau
de perto
e talha: três, três de paus.
Cova.

Molha
e não dispensa.
Adubo; pó de esterco mancha o rego
de longo
e forma: nó, nó de resmo.
Joga.

Troca,
então condena.
Contrato; quê de paga perde o ganho
de hora
e troça: mais, mais de ano.
Calca.

Cova:
e não se espanta.
Plantio; fé e safra sofre o homem
de morte
e morre: rês, rés de fome
cava.

 
O tolo e o sábio
 
O sábio que há em você
não sabe o que sabe
o tolo que não se vê.

Sabe que não se vê
o tolo que não sabe
o que há de sábio em você.

Mas do tolo que há em você
não sabe o sábio que você vê.


Chuva Interior

Quando saia de casa
percebeu que a chuva
soletrava
uma palavra sem nexo
na pedra da calçada.
Não percebeu
que percebia
que a chuva que chovia
não chovia
na rua por onde
andava.
Era a chuva
que trazia
de dentro de sua casa;
era a chuva
que molhava
o seu silêncio
molhado
na pedra que carregava.
Um silêncio
feito mina,
explosivo sem palavra,
quase um fio de conversa
no seu nexo de rotina
em cada esquina
que dobrava.
Fora de casa,
seco na calçada,
percebeu que percebia
no auge de sua raiva
que a chuva não mais chovia
nas águas que imaginava


Forca na força

a palavra na boca
na boca a palavra: força
a força da palavra força
a palavra rolha fofa
a rolha fofa sem força
a palavra em folha solta
a força da palavra forca
a palavra de boca em boca
na boca a palavra forca
a palavra e sua força

John Siddique

 
Love and the Body

and all there is, is love and the body,
nothing to give but this moment,
and this moment and this moment,

and all there has ever been is you and I
so easily lost in the feelings, the reaching,
and all there is, is love and the body.

All these faces and you and I
the space between, like the morning light,
and this moment, and this moment.

Surrounded by your sound, as if bees
were swarming, or a distant voice calling your name,
and all there is, is love and the body.

Our bodies, our trees of life.
The fruit of ourselves, giving and self-giving,
and this moment and this moment.

You are an unanswered question.
All there is, is love and the body.
Action of blood, character, skin, muscle, thought,
and this moment and this moment.

Thirst

Imagine thirst without knowing water.
And you ask me what freedom means.
Imagine love without love.

Some things are unthinkable,
until one day the unthinkable is here.
Imagine thirst without knowing water.

Some things we assume just are as they are,
no action is taken to make or sustain them.
Imagine love without love.

It is fear that eats the heart: fear and
endless talk, and not risking a step.
Imagine thirst without knowing water.

Fold away your beautiful thoughts.
Talk away curiosity, chatter away truth.
Imagine love without love.

Imagine believing in the whispers,
the screams and the gossip. Dancing to a tune
with no song to sing inside you.
Imagine love without love.

Inside # 2

“There is no more time”
9.47, the peak of the morning rush is
beginning to subside, though the tube is
closed so he’s taking the bus to work.
A woman at the front of the bus is
on her way to her course. There is
a girl on her way to the dentist, and
a cleaner on her way home. A bus full
of people like this and more.

Then there is no more time, just a flash.
No time for fear. Here then gone, or
unconscious, or at the edge, or screaming.
All fixed in their own heads a moment ago,
busy being late for things, tired, looking forward
to a cup of tea, or just getting there
to get out of this traffic.

9.47 lasts forever and ticks on for the rest of us.
Before and after the application of words. Divide
the hour, divide the minute, sub-divide the second,
keep on dividing and time ceases to exist.

Desire for sight (after Lorca)

When gossip starts all that is left is gossip.

When fear takes hold, all that is left is the fear.

Fold away your papers,

colour in the outlines.

Regret is the first town our train will pass though.

Unknowing, the confusion of unknowing.

Let my country see itself,
may its people be visible to each other.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Marize de Castro



Prece
 
Quem aqui me trouxe
brincava de ser Deus.
Banhou-me em águas turvas.
Desenlaçou-me.

Se não sou amada, adoeço.
Sigo para o último abismo.
Vou ao encontro da fêmea
tatuada de auroras.

Ajoelho-me.

Oro pela fragilidade das horas.

Erma


Recolho-me tão profundamente
que tudo me alcança:
mísseis, desastres, lanças.

Recostada ao rosto de Deus
pedi-lhe a fé perdida
a palavra antiga – invencível.

Ele me deu o mar no nome
e uma fome borgeana, dizendo-me:
Eis sua herança, jovem senhora
de velhíssima alma e furiosas lembranças.


Néctar

A verdade aproxima-se.
Olha-me com os olhos
abismados da beleza.

Não sou a mulher
que corta os pulsos e se joga da janela
nem aquela que abre o gás
nem mesmo a loba que entra no rio
com os bolsos cheios de pedra.

Sou todas elas.

Escrever me fez suportar todo incêndio

– toda quimera.

 
Predestinada

Nua, às três da madrugada,
ainda escavo minas
instaladas em minha alma.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

José Carlos Peliano



Oração para Luís Fernando Veríssimo:

"Oh! Luís, divino Luís, todo poderoso Luís, se acerte com Fernando, seu irmão e companheiro de fé, Senhor de si e de seus desígnios mais louvados, que vive com você na mesma pessoa, encerrem as desavenças e os distúrbios internos, escondidos e mal sabidos, que tomam corpo, mente e espírito e trazem apreensão e preocupação a todos nós que os queremos bem! Recuperem a boa relação e convivência, a paz e a tranquilidade e mais anos e anos de vida. trazendo de volta ao convívio o amor Veríssimo! Que o sax da boa nova esparrame o som por todos os cantos e ouvidos! Assim seja!"

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Paulo Bonfim



Soneto de transfiguração

Venho de longe, trago o pensamento
Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonias.

Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.

Retenho dentro da alma, preso à quilha
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha

Onde sonham morrer os albatrozes…
Venho de longe a contornar a esmo,
O cabo das tormentas de mim mesmo.

Outro serei amanhã

Outro serei amanhã
Quando o silêncio pousar
Na rosa branca dos ventos
Rosa de espuma e luar.
Outro serei, quando as aves
Voltarem da tempestade,
Trazendo a luzir na treva
Sementes de eternidade.
Outro serei, quando a noite,
Como nunca, de mansinho,
Vier espreitar-me os passos,
Junto à incerteza e ao caminho.
Outro serei amanhã
E entre dois esquecimentos
Levarei meu sorriso

Basta ser o outro

Basta de ser o outro…
O herdeiro da terra,
O neto de seus avós!
Basta de ser
O que leu
E o que ouviu…
À terra devolvo
O cálcio, o ferro, o fósforo;
À núvem devolvo a água rubra,
Aos mortos,
As angústias herdadas,
Aos vivos
Os gestos e as palavras recebidas…
Basta de ser o outro,
Colcha de retalhos alheios,
Cobrindo um frio verdadeiro.

Pastor já fui desse rebanho alado

Pastor já fui desse rebanho alado,
Que pelos céus caminha, pensativo,
A ruminar a grama azul do prado
E a desmanchar-se em pensamento vivo.

Pastor já fui de olhar perdido e calmo,
Guardando as reses pelo campo etéreo,
Entoei sobre a campina cada salmo
De um livro que perdi sobre o mistério.

Já fui pastor fora de certo espaço,
Das loucas dimensões em que me banho,
Não sei se é no futuro em que me abraço

Ou no passado desse meu rebanho!
Pastor já fui, hoje arrebanho a mágoa
Do meu rebanho a desfazer-se em água.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Yoko Ono



Color Piece

Visual world not exactly shaped –
Sense of smell, anticipation, senses that
are not exactly shaped —
Dark shadows casted –
Rat colors with faint hairly smells and pale
dark spots like those on a transparent sheet
of celluloid –
Rose color with a glitter and softness that
is cool and motional –
The kind of color that does not exist by
itself but only when it is casted between
two moving objects –
The color like a remaining stain of illusion
on a moving object –
The color that only happens when movements
cut the air in a certain way and go immediately.
Use such color to tint your absent thoughts.
Have absent thoughts for a long time.

Map Piece

Draw an imaginary map.
Put a goal mark on the map where you
want to go.
Go walking on an actual street according
to your map.
If there is no street where it should be
according to the map, make one by putting
the obstacles aside.
When you reach the goal, ask the name of
the city and give flowers to the first
person you meet.
The map must be followed exactly, or the
event has to be dropped altogether.
Ask your friends to write maps.
Give your friends maps.

Mirror Piece

Instead of obtaining a mirror,
obtain a person.
Look into him.
Use different people.
Old, young, fat, small, etc.

Air Talk

It’s sad that the air is the only thing we share.
No matter how close we get to each other,
there is always air between us.
It’s also nice that we share the air,
No matter how far apart we are
the air links us.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Leonardo Fróes

 

Introdução à arte das montanhas

Um animal passeia nas montanhas.
Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede,
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
Puxado sempre para cima, o animal é um ímã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,
ainda, que agora tem de aprender a descer.

Ambições de assombrações

Incertos os galhos tortos, você
vê, armam-se como esqueletos
de silenciosa e fria carnadura
como se, no escuro, de cada galho
surgissem numerosas pessoas
vendo você observá-las na sua
desabitada languidez vegetal
de pessoas nuas resinosas
querendo corporificar sem poder
gestos aflitos, ritos solitários
músicas de imperceptível tremor
e, naturalmente, a semente da morte
inoculada por cada criatura
no seu próprio olho desmesurado.

Estar estando

A impressão de estar, o lento
espanto que se repete. Aqui e onde, eis como
povôo ao mesmo tempo dois espaços
ou, mais que isso, passo a noite inteira
vivendo as sensações de um fragmento
que me é próprio, ou é-me o corpo todo,
e de repente vai sem deixar marca
entre o que foi e o há de ser. Deslizo
nessa fronteira vã que não separa
nada e ninguém, passado nem presente, simples
e uniforme
faixa de areia da qual jorram palavras,
visões, retratos, intenções. É sempre agora
e nunca, sempre sono e manhã, sempre uma coisa
que num jogo dual se nulifica
para sobrar de nós sempre esse caldo
de frustração e medo - ou de esperança.

Dia de dilúvio

Quando chove assim tão seguidamente na serra
e começa a pingar água na casa e a goteira
cresce e a pia entope e alaga o chão,
quando não cessa esse barulho insistente
de água penetrando em tudo e rolando,
sinto uma desproteção total violenta
e eu mesmo sendo dissolvido também
nessa casa alagada, não me acho
enquanto solidez: vou flutuando
como onda inconstante na correnteza.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Vera Pavlova


 
Perhaps when our bodies throb and rub

Perhaps when our bodies throb and rub
against each other, they produce a sound
inaudible to us but heard up there, in the clouds and higher,
by those who can no longer hear common sounds . . .
Or, maybe, this is how He wants to check by ear: are we still intact?
No cracks in mortal vessels? And to this end He bangs
men against women?
 
Another poet came into being
 
Another poet came into being
when I saw the life of life,
the death of death:
the child I had birthed.
That was my beginning:
blood burning the groin,
the soul soaring, the baby wailing
in the arms of a nurse
 
Learn to look past
 
Learn to look past,
to be the first to part.
Tears, saliva, sperm
are no solvents for solitude.
On gilded wedding bowls,
on prostitutes’ plastic cups,
an eye can see, if skilled,
solitude’s bitter residue.
 
A beast in winter
 
A beast in winter,
a plant in spring,
an insect in summer,
a bird in autumn.
The rest of the time I am a woman

domingo, 11 de novembro de 2012

Gilka Machado



Ser Mulher ...

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior...

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor...

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...

Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!
 
Particularidades ...

Muitas vezes, a sós, eu me analiso e estudo,
os meus gostos crimino e busco, em vão torcê-los;
é incrível a paixão que me absorve por tudo
quanto é sedoso, suave ao tato: a coma... Os pêlos...

Amo as noites de luar porque são de veludo,
delicio-me quando, acaso, sinto, pelos
meus frágeis membros, sobre o meu corpo desnudo
em carícias sutis, rolarem-me os cabelos.

Pela fria estação, que aos mais seres eriça,
andam-me pelo corpo espasmos repetidos,
às luvas de camurça, às boas, à pelica...

O meu tato se estende a todos os sentidos;
sou toda languidez, sonolência, preguiça,
se me quedo a fitar tapetes estendidos.

Incenso
 
Quando, dentro de um templo, a corola de prata
do turíbulo oscila e todo o ambiente incensa,
fica pairando no ar, intangível e densa,
uma escada espiral que aos poucos se desata.

Enquanto bamboleia essa escada e suspensa
paira, uma ânsia de céus o meu ser arrebata,
e por ela a subir numa fuga insensata,
vai minha alma ganhando o rumo azul da crença.

O turíbulo é uma ave a esvoaçar, quando em quando
arde o incenso ... Um rumor ondula, no ar se espalma,
sinto no meu olfato asas brancas roçando.

E, sempre que de um templo o largo umbral transponho,
logo o incenso me enleva e transporta minha alma
à presença de Deus na atmosfera do sonho.
 
Lembranças

Teus retratos — figuras esmaecidas;
mostram pouco, muito pouco do que foste.
Tuas cartas — palavras em desgaste,
dizem menos, muito menos
do que outrora me diziam
teus silêncios afagantes...
Só o espelho da minha memória
conserva nítida, imutável
a projeção de tua formosura,
só nos folhos dos meus sentidos
pairam vívidas
em relevo
as frases que teu carinho
soube nelas imprimir.

Sou a urna funerária de tua beleza
que a saudade
embalsamou.

Quando chegar o meu instante derradeiro
só então, mais do que eu,
tu morrerás
em mim.

Carlito Azevedo



Menino

A pérola
fria
o topázio
quente
dividiam seu
rosto ao meio:
olhos de gato,
olhar de gamo

Estragado

No jardim zoológico
um ganso

as patas afundam na lama
e ele imperial
como uma macieira em flor

mas está estragado
como qualquer um pode ver
estragado

pensa que foi para isso
que o resgataram do dilúvio

mas não
resgataram o signo
estragaram o ganso

Banhista

Apenas
em frente
ao mar
um dia de verão -
quando tua voz
acesa percorresse,
consumindo-o,
o pavio de um verso
até sua última
sílaba inflamável -
quando o súbito
atrito de um nome
em tua memória te
incendiasse os cabelos -
(e sobre tua pele
de fogo a
brisa fizesse
rasgaduras
de água)

Limiar

A via-láctea se despenteia.
Os corpos se gastam contra a luz.
Sem artifícios, a pedra
acende sua mancha sobre a praia.
Do lixo da esquina partiu
o último vôo da varejeira
contra um século convulsivo.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Antonio Carvajal



Prêmio Nacional de Poesia de 2012 concedido pelo Ministério da Educação, Cultura e Esportes da Espanha

Correspondencia

Fosa común de pájaros y fuentes
eran tus ojos en la tarde ardida.
Había un brillo cruel de luz mordida
en tus labios sin besos y en tus dientes.

Ayer dos corazones coincidentes,
hoy dos bordes sangrantes de una herida,
mañana doble sombra de guarida
de sierpes y de lobos impacientes.

Tú, aquí; él, por ahí: Porque no es buena
la vida, no: No es justa y no es sagrada
para quien muerde el fruto de la ciencia.

Esa ciencia que nace de la pena
de no verse mirada en su mirada,
pedir amor y recibir paciencia.

Idillo

Dicen todos: Ellos son,
ellos cantan, ellos miran
la aurora de las acequias,
el ruiseñor que origina
tristezas de amor, extrañas
y suaves melancolías.
¡Cuánta flor han deshojado,
cuánta mirada cautiva,
cuánto encaje de hilo limpio,
cuánto beso sobre el día
que como un pozo de brasas
se enciende y los aniquila!
...no son ellos; ya no son
más que tórtola en la encina,
más que el agua del venero,
más que la flor de alegría,
más que una vara de nardos
llameante a maravilla,
el torso bello y desnudo,
la boca que les destila
ámbares, rosas, jazmines
y una palabra no dicha,
palabra sola que son,
amor, amor... Y la brisa
los lleva, blancos y puros,
los lleva a las altas cimas,
los lleva a las luces ebrias,
hacia las estrellas fijas…

Pasión

Con estos mismos labios que ha de comer la tierra,
te beso limpiamente los mínimos cabellos
que hacen anillos de ébano, minúsculos y bellos,
en tu cuello, lo mismo que el pinar en la sierra.
Te muerdo con los dientes, te hiero en esta guerra
de amor en que enloquezco. Sangras. Y pongo sellos
a las heridas tibias, con besos, besos....Ellos
que han de quedar comidos, mordidos por la tierra.
Tal ímpetu me come las entrañas, que sorbo
tu carne palmo a palmo, cerco de llama el sexo,
te devoro a caricias, y a besos, y a mordiscos.
Ni la muerte, ni el ansia, ni el tiempo son estorbo.
El abrazo es lo mismo si cóncavo o convexo,
y yo soy un cordero que trisca en tus apriscos.

Tigres en el Jardín

Como un ascua de odio te hemos visto en la aurora,
como un trigal de cielo derramado en la vega,
y hemos sorbido el agua que tu contacto dora
y ese aroma de rosas que nos cerca y anega.
En este huerto el lirio es feliz. Sólo implora
libertad nuestra sangre, mientras la nube llega,
se riza y, leve, pasa. Da el chamariz la hora,
y el gozo de la sombra, como un rencor, nos niega.
Solos entre las dalias, entre cedros y fuentes,
tanto nos asediamos que nos cala hasta el hueso
este amor sin futuro y esta luz de los dientes.
Tigres somos de un fuego siempre vivo e ileso,
y te odiamos por libre, recio sol, mientras puentes
de plata ha levantado la muerte a nuestro beso.

Zila Mamede

 
Trigal


Por entre noite e noite, essas veredas
para os trigais maduros me acenando.
Despertam-se campinas, precipitam-se
as invenções da luz na ventania.

Por entre lua e lua, essa querência
- um resmungar de espigas conscientes
do retorno às searas, que ceifeiros
já descerraram olhos invernais.

Planície enlourecendo se oferece
e um mar desenha nos pendões crescentes.
Ceifeiros - seus marujos sem navios -

pescam sementes, riscam no amarelo
a saudade dos peixes inascidos
nesse (não mar das águas) mar de pão.

Soneto da Espera

O verde obstinara-se em teus braços
em mim compôs apenas superfície
de tempo, de que és vértice: nasceste
na tessitura frágil das lembranças.

Carregados teus pés se justapõem
às andanças, maduros de certezas
que tuas mãos colheram, na visão
das auroras caídas sobre a mesa.

Verde, esse teu aliciando ventos
sugere uma esperança vespertina
entre os vãos paralelos das estrelas.

Comigo - claro escuro - o tempo estaca
se verde o sol me abriga, definindo-te
cada vez mais tranqüilo de mistérios.

Lagoa do Bonfim

À visão da lagoa quieta
uma paz de superfície desabrocha
que a lagoa repousa,
profunda.

As águas conservando
nas entranhas
um último segredo
de afogados,

prematuros desesperos
de afogados,
silenciosas tragédias
de afogados.

Tardias horas:
o repouso da lagoa se embrutece
e as maretas conversam,

e as andanças dos ventos da lagoa
decifram pensamentos e segredos
de afogados.

Falanges de fantasmas suicidas
dispersam o súbito murmúrio da lagoa
que é o seu próprio mistério.

Novamente a tranqüila,
novamente a transparente face da lagoa
se mostra:
e dos mortos aquáticos
o segredo permanece
puro.

Corpo a Corpo

Pasto branco
potro bravo
corpo a corpo
corre o certo
tempo incerto
de um corisco

Pasto e cobra
rosto franco
na empreitada:
febre e fogo
nesse jogo
de encontrar-se

Pasto e potro
rasto e sono
em breve trato:
rosto acorda
laço e corda
desatados

Pasto grave
tenso rosto:
cobra-cobra
se consome
na empreitada
re-presada

Pasto franco
rosto breve
fogo e risco
fome e riso
no improviso
desse jogo

Pasto bravo
potro branco
corpo a corpo:
na campina
o potro: a crina
engalanada.