De que fel preparava
as porções que servia?
O papel que rasgava
era eu que escrevia?
De que erva era o chá
que o bule fervia?
De que águas o mar
que cortava de fria?
De que sal o tempero
que azedava o meu dia?
De que fogo o luar
que furioso latia?
De que medos a tarde
mastigava e mordia?
De que arte marcial
o furor apreendia?
De que livro infernal
as lições consumia?
De que bem, de que mal
se chorava, se ria?
De que torvo quintal
suas flores colhia?
Desamores
Quero me despojar
de tudo o que não tenho.
Limpar meus horizontes
de artes e de engenho.
Quero me desfazer
de tudo o que não tive.
A certeza certeira
de quem viveu não vive.
Quero me entristecer
de alegria e calma.
Olhar no espelho e ver
a cara de minha alma.
E quero dessofrer
o que nunca sofri.
O gosto do prazer:
sumo de sapoti.
Não somos um
Não lhe direi o impossível,
a verdade alastrou-me:
o seu valor equivale
à densidade dos outros.
Não somos um. Que outrora
éramos um, ou pensamos
sermos eu, você, o outro,
três elementos distintos.
Cada movimento teu
altera, sem restrição,
o passo próximo dado
pelo seu pai ou amigo.
A função é coligada,
contínua, una, solúvel,
se arrebentarmos todos,
você se dissolverá.
Calarei o impossível
a multidão alastrou-me.
O meu valor equivale
à conjunta redenção.
A coisa útil
é útil à proporção que alimenta.
A couve-flor (ou mesmo o ar)
é bela porque germina.
Assim o trigo e o canavial,
o café e o porto,
a mulher e o tempo.
Sementes de gordos horizontes.
Comei deste poema
um gomo ou a laranja integral.
O pó não alimenta,
mas na terra o pasto viceja.
No pensamento vazio nada vive,
mas onde houver substância,
ali o alimento existe.
Mastigai o poema,
com casca, polpa, germens, ácidos.
Os resíduos seguirão o doloroso fim.
A seiva enriquecerá teu plasma sanguíneo:
em ferro e iodo,
em sol e tempo
e horizontes palpáveis.
Uma fruta (ou mesmo a harmonia),
o agrião, as greves e as alfaces,
- palavras indigestas à poesia…
No entanto, o nutritivo poema se fermenta
e sobre cidades, soldado, fábrica, menino,
explica a anemia,
nutre a revolução.
Nenhum comentário:
Postar um comentário