Vestido
O que escondo no bolso do vestido
não é para ser
visto por qualquer
um que ambicione compreender
ou que às vezes cobice
esta mulher.
O que guardo no bolso do vestido
e que escondo assim,
ciumentamente,
é como um terço de vidro
de contas incandescentes
que
se toca com as pontas dos dedos
nos momentos de perigo,
para afastar o
medo;
é como um rosário antigo
que um fiel fecha na palma da mão
para fazer fugir a tentação
quando um terremoto lhe ameaça a fé:
Jesus, Maria, José,
que meu micro-vestido esvoaçante
não vos
ofenda em vão os olhos castos;
que minhas sandálias de prata
não me
falhem nos instantes de cansaço;
que a tiara de princesa que não uso
não
se perca entre os dedos dos incautos,
os sonhos dos reclusos;
que eu
nunca quebre um salto;
que não me falta jamais um parafuso
(não que se
note);
que com sorte, cautela e canja
eu um dia me transforme numa anja
e lá do alto
repique os sinos para congregar os loucos, os aflitos,
os que vos chamam aos gritos,
os que nunca têm respostas.
Mas
que mantenha nos bolsos,
mas que mantenha nos olhos
um breve contra os
olhados
bons e maus;
que continuem assim os meus vestidos:
precipitados nas costas,
bem curtos, desaforados,
mal-comportados,
bonitos.
O que inda escondo nos bolsos
e murmuro nos instantes
adversos
é um verso medieval
escrito às pressas
em dialeto
provençal, é claro,
por um bardo meio analfabeto
com caracteres
rabiscados, inseguros;
é uma bola de cristal
que não deixa prever o
futuro;
é uma invocação, um cântico,
escapulário,
um patuá romântico
cheio de pétalas azuis,
– para me proteger das bruxas que não fui;
dos passes
que jamais permiti que me encantassem;
da maldição
que não veio dos meus sins, mas sim de um não
– de um único não,
uma
bobagem,
que não daria jamais
um furo de reportagem.
Pitangas
Era uma
febre, um delírio,
Uma mandinga bem feita,
cama com cheiro de
lírio.
Era um delírio, uma febre,
amor que não se endireita,
quebranto que ninguém quebra,
tremedeira de maleita,
uma mulher e um
ébrio
de amor que não toma jeito.
E ela, que não se emenda?
Meus
dedos fazendo renda
com os pêlos do seu peito;
o coração que se escuta
pelo quarteirão inteiro;
pitangas no travesseiro,
cama com cheiro de
fruta.
O amor dos outros
O amor dos outros
é
indiferente.
Só o da gente
é especial,
fosforescente,
brilha no
escuro.
O amor dos outros
é tão pequeno,
nem vale a pena
pichar o muro.
Ninguém entende
o amor alheio;
não é bonito
e não é feio.
O amor dos outros
é tão efêmero!
Estão amando?
Fazendo gênero?
O amor dos outros
é muito pouco:
só o da
gente,
direito ou torto,
alegre ou triste,
sereno ou louco,
lascivo ou puro,
céu ou inferno
— só o da gente
será eterno.
Olha pro
rosto
do amor alheio:
são só dois olhos,
nariz no meio,
cadê a
boca?
Olha pra cara
do amor da gente:
que coisa louca!
Outros papos
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