Peliano costuma brincar que a poes-ia e foram os poetas que a trouxeram de volta! Uma de suas invenções mais ricas é conseguir por em palavras lirismos maravilhosos, aqueles que percebemos de repente e temos a impressão que não vamos conseguir exprimi-los. Exemplos: de Manoel de Barros -"Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura. De tarde o deserto já estava em nós"; de Ernesto Sabato - "Sólo quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para ... recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido"; de Thiago de Mello - "Faz escuro mas eu canto"; de Helen Keller - "Nunca se deve engatinhar quando o impulso é voar"; de Millôr Fernandes - "Sim, do mundo nada se leva. Mas é formidável ter uma porção de coisas a que dizer adeus". É como teria exclamado Michelangelo que não fora ele quem esculpiu Davi, pois este já estava pronto dentro da pedra, Michelangelo apenas tirara-o de lá. Então, para Peliano, o lirismo é quando nos abraça o mundo fora de nós, cochicha seu mistério em nossos ouvidos e o pegamos com as mãos da poesia em seus muitos dedos de expressão.

Entrevistas: Ferreira Gullar e Manoel de Barros

Ferreira Gullar


 (Ronaldo de Oliveira/CB/D.A Pres)


Poucos sabem, mas o poeta Ferreira Gullar foi o primeiro diretor da Fundação Cultural de Brasília, tendo assumido o cargo em meados de 1961. Eram tempos épicos em que até afixar um prego constituía uma aventura. Ele tentou realizar a junção do que havia de mais moderno e mais popular. Promoveu salões de arte e trouxe a Escola de Samba da Mangueira. Mesmo sem visitar Brasília há muitos anos, a conexão com a cidade permanece. Gullar foi homenageado com uma edição especial do Poema sujo, pela Confraria dos Bibliófilos de Brasília. E acaba de ser distinguido com o Prêmio Jabuti de Ficção pelo livro de poesia Em alguma parte alguma. Nesta entrevista, ele fala sobre o “Poema sujo”, poesia, espiritualidade, socialismo, capitalismo, crítica, arte e mistificação da arte.

Em que circunstância o senhor escreveu o “Poema sujo”? O que representou esse poema para a sua vida?
Foi escrito durante os tempos em que eu estava exilado em Buenos Aires. É fruto dessa situação que se criou no Brasil no período do golpe militar de 1964. O exílio, para mim, não foi muito fácil. Depois de uma série de problemas, que me deixaram estressado, terminei no Chile, quando houve fuzilamentos e torturas. Saí de lá salvo pelo gongo. Ao chegar à Argentina, morreu Perón e começou a conspiração para derrubar Isabelita Perón. A situação se tornou tão dramática que decidi escrever o poema como se fosse a última coisa que eu faria na vida. Não tinha mais nem passaporte para sair do país. Acredito que essas circunstâncias contribuíram para a dramaticidade que acabou impregnando o texto, em decorrência dessa situação-limite.

Em que medida o “Poema sujo” precipitou ou contribuiu no sentido de que você voltasse ao Brasil?
Acho que contribuiu de alguma maneira, pois teve uma repercussão muito grande, uma acolhida da crítica e do público que esgotou rapidamente a primeira edição. Alguns jornalistas ligados ao regime militar foram falar com o Golbery, à época chefe da Casa Civil, tentando negociar o meu retorno. O regime militar não aceitou. Mas decidi voltar assim mesmo, em grande parte devido à repercussão do poema. Naquelas condições, seria difícil dar um sumiço em mim.

Como foi a experiência do exílio? Sentia falta do quê?
No meu caso, nunca me adaptei ao exílio, não montava casa no sentido pleno da palavra. Considerava os apartamentos em que morava como acampamentos provisórios. Os móveis que eu tinha eram improvisados. Sempre pensava: “Estou acampado e logo vou- me embora”.



 (Adauto Cruz/Reprodução/CB/D.A Press)
O senhor ainda é um filho do grande ciclo do modernismo brasileiro na poesia. Como avalia a produção atual de poesia?

Não gostaria de citar nomes, pois sempre que cito me esqueço. Mas, depois da minha geração, surgiram poetas que marcaram a sua posição e continuam produzindo com qualidade.

Algumas pessoas consideram que, depois de ser um líder da esquerda durante a década de 1960, o senhor se tornou conservador e até mesmo de direita. Como percebe essa imagem que criam de você?
Quem diz isso é o cara que ainda está pensando em termos de direita e esquerda. Acredita em uma coisa que acabou, o socialismo marxista, que, de fato, deu uma grande contribuição à mudança do mundo, realizou a defesa dos trabalhadores, ajudou a mudar a relação capital e trabalho. Graças a essa luta do socialismo, os trabalhadores conquistaram muitos direitos. Mas a visão da utopia socialista foi superada. Quem me chama de conservador não tem coragem de romper com os seus enganos.

No que o senhor acredita, hoje, em termos políticos?
Sou a favor de uma sociedade justa, sou a favor que a luta continue. O lema que está valendo é: “Internautas do mundo inteiro, uni-vos”. A juventude está nas ruas criticando o capitalismo e exigindo a mudança dele, porque é um regime injusto, que cria desigualdades. Mais do que nunca, as pessoas estão percebendo esta situação. E, por isso, ele vai mudar.

O senhor já deixou claro várias vezes que não é religioso. Mas é possível afirmar que há, nos seus últimos livros de poesia, uma busca da espiritualidade?
Sei que as pessoas estão percebendo que alguma coisa mudou. Mas não se trata disso. Não tenho religião, sou agnóstico, não vejo possibilidade de acreditar em uma força ou em um ser superior. Pode ser uma deficiência minha. Considero que a vida é absurda. Mas, apesar disso, reconheço que a religião é uma coisa muito importante para as pessoas. Foi criada pelo ser humano por uma necessidade fundamental. O ser humano precisa responder a perguntas que não têm resposta. Depois de séculos de desenvolvimento do materialismo, a religião continua com seus seguidores. O que acontece, no meu ponto de vista, é que começo a indagar a falta de sentido, de não poder explicar o mundo. Não aceito a explicação religiosa nem a materialista. Acho o mundo incompreensível e, evidentemente, questiono o materialismo.

O senhor foi o primeiro diretor da Fundação Cultural de Brasília. Como foi a passagem pela cidade?
Morei em Brasília no tempo em que a cidade não tinha nem um ano de idade. Eu programei o primeiro aniversário de Brasília. Fui eu que levei a primeira escola de samba ao Planalto. Convidei o pessoal da Mangueira.

Considera que deixou algum legado em sua passagem por Brasília?
Se houve algum legado, foi o de ter levado o samba para Brasília. Sou um dos responsáveis. Muitos funcionários do Congresso me telefonaram e diziam: “Eu quero desfilar”.

Como vê Brasília hoje?
Acho que Brasília tem alguma coisa de positivo no investimento que atraiu para o Centro-Oeste. Mas ao mesmo é um peso enorme na economia do país e virou um lugar de privilégios. É uma cidade que pouco produz e gasta rios de dinheiro.

Mas Brasília não proporcionou também oportunidades para muita
gente que estava alijada e não levou o desenvolvimento para o interior do Brasil?
Isso é o lado positivo. Ao levar a capital para o interior, ajudou o crescimento de outras regiões, que não ficou mais só no Rio e em São Paulo. Mas não sei se isso compensa os custos. Agora, está feita, a cidade cresceu e, ainda bem, violou o Plano Piloto. Se Brasília fosse obedecer o Plano Piloto do Lucio Costa, seria um desastre. Era algo muito racional, que engessava tudo. Quando cheguei lá, a cidade estava incompleta, eu queria comprar um pão à noite e não podia. Aqui (no Rio), desço e compro o que quiser. Acabei de comprar um par de sapatos.

No entanto, o planejamento não é algo importante?
É preciso planejar a vida. Mas se você planejar tudo, não vive. Porque o excesso de planejamento inibe a espontaneidade na vida. A vida é mais rica do que qualquer planejamento. É tecida de acasos e de probabilidades, escapa a todo o controle racional. Ela é feita de acontecimentos e situações imprevisíveis.

Que avaliação faz da situação atual da crítica de arte no Brasil?
Se não existe mais arte, como existiria crítica?
A arte contemporânea não é arte. Costumo dizer que obras de arte, seja um poema, uma escultura ou uma pintura, não existiam, mas à medida que o artista vai pintando, se envolvendo com fatores casuais, imprevisíveis, daqui a pouco eles se tornam necessários. O artista dá a primeira pincelada sem saber direito para que rumo irá, mas entra em um jogo de acaso e necessidade. Foi assim que surgiram o quadro da noite estrelada de Van Gogh ou os poemas de Carlos Drummond. Agora, se boto seis casais nus, mas poderiam ser sete, no Moma (Museu de Arte Moderna de Nova York), não acontece nada. É um vale-tudo. Outro suposto artista colocou 20 ovos fritos na galeria. Isso é o contrário da arte. Uma arte que não tem isso não é arte.

Quem sustenta esse estado de coisas?
As instituições, os museus e as bienais. A arte de vanguarda sempre foi anti-institucional, mas a arte contemporânea depende e só acontece dentro das instituições. O urinol de Marcel Duchamp só é arte no museu; na loja, não é. A minha poesia mudou e continua mudando até hoje. Mas você pegar 20 lençóis, mandar para os leitos dos hospitais e depois expor é uma mistificação. As instituições, a Bienal e o Moma expõem tudo isso porque não querem ser retrógados. Todo mundo quer ser jovem e moderno. A Bienal de São Paulo recebeu uma obra com uma porta e os dizeres: “Aqui você entra de graça”. Aí, eles colocaram no fundo da galeria e só era aberta para visitação das cinco às seis da tarde, com um policial vigiando.

Mas, para além das mistificações, não existem experiências interessantes na arte contemporânea?
Existem coisas isoladas. Aquela sala vermelha que o Cildo Meirelles concebeu é realmente criativa. No entanto, a maioria é mistificação. Pegaram um cachorro e deixaram morrer de fome e sede em uma galeria para fazer uma obra supostamente perecível. A Mona Lisa foi encontrada dentro de um baú de roupas sujas e continuou sendo a Mona Lisa. Onde estiver, permanecerá uma obra de arte. Mas e aqueles seis casais que posaram nus no Moma? Se saírem na rua, as pessoas vão é passar a mão na bunda deles.


Manoel de Barros



(Entrevista copiada do Blog Estação da Palavra)

A Revista Leituras é uma publicação da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação financiada por um projeto da UNESCO. Seu objetivo é incentivar a competência leitora no ambiente escolar. A revista número 2-anoII, de março de 2007, trouxe uma entrevista com o poeta Manoel de Barros. Eis a entrevista:

Quando o Sr. Começou a escrever poesia?
Manoel: Pra não mentir eu acho que não sei. Com dez anos arrebentou uma brotoeja. Com 12 anos outra. Com 13 outras. A data pode ser escolhida. Mas penso que escrever mesmo na certeza de que fazia literatura foi aos 13 anos.

Manoel de Barros só foi reconhecido como um grande poeta depois dos 70 anos de idade, mesmo tendo publicado seu primeiro livro, Poemas concebidos sem pecado, em 1937. Como é para um escritor esperar tanto tempo pelo reconhecimento de sua produção? O poeta precisa ser um pouco teimoso?
Publiquei meu primeiro livro aos 19 anos. Ninguém me viu, publiquei aos 22, aos 28, aos 70 e ninguém me viu. Me acostumei com o silêncio. Eu sou conformado como um sapo.

Só em 199 é que o Sr. Lançou livros para crianças: Exercícios de ser criança. Há diferença em escrever para adultos e para crianças?
Acho que a palavra tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria. Nesse primeiro livro infantil talvez eu tenha aproveitado melhor a inocência das palavras.

Que poetas ou escritores foram essenciais para a sua formação? Quais os livros que o Sr. gosta de reler?
Ainda no Colégio São José, interno, eu li toda a literatura quinhentista portuguesa. Ria muito com Gil Vicente e tive vontade de ser Gil Vicente. Depois me deram Vieira, Vieira lisonjeava as palavras mais que a sua doutrina. Até hoje gosto de ler os quinhentistas portugueses.

O poeta Ezra Pound afirma que há três grandes procedimentos básicos da linguagem poética: a que explora a música, a imagem e a ideia. O Sr. concorda com esta afirmação? Se sim, de quais procedimentos sua obra mais se aproxima?
Tenho em mim uma certeza. Esta: o que marca a eternidade de um artista é a sua linguagem e não as suas ideias. Não suprimo as ideias, mas acho que em poesia elas são o acessório. Não são fundamentais. A imagem e a música são fundamentais. Poesia é armação de palavras com um canto dentro. A armação de palavras não seria para dar ideias, mas para transmitir encantamento.

No soneto A um poeta, Olavo Bilac refere-se ao trabalho do poeta de modo a sugerir uma penosa atividade de reescrita. O senhor também “trabalha e teima, e lima, e sofre, e sua” a cada poema?
Acho que todo artista leva essa dor. A busca da perfeição é uma dor incurável. Porque a perfeição foge sempre de quem a procura. Quando o artista pensa que atingiu o milagre estético, logo vai ver que não atingiu.

Com nasceu o amor pela poesia? A escola teve algum papel nisso?
Sabemos todos que poesia não se aprende na escola. Acho que é um dom que se vai mostrando devagar. Outros acham que poesia não é um dom _ é uma disfunção cerebral. É consequência de um parafuso a mais ou a menos na cabeça. Porque despraticar as normas é virtude em poesia.

Quais suas principais lembranças do período escolar? Houve algum (a) professor(a) decisivo para sua carreira?
Fui aluno interno do colégio São José do Rio de Janeiro. Havia lá um padre que ficou meu amigo e me mostrou e me indicou de literatura verdadeira, livros feitos com aplicação e vontade estética. Descobri meu gosto literário lendo tais livros.

Que conselhos daria a um professo que lhe perguntasse como despertar o gosto pela poesia em seus alunos?
Acredito no incentivo à leitura de bons livros. Não sei dar conselhos. Na minha pequena cidade havia um personagem de rua que sempre repetia esta frase: “Quem não ouve coseio, conseio ouve ele”.

O Sr. já afirmou que se aproximou do escritor Guimarães Rosa como se se aproximasse de um mito. Foi sua influência literária mais marcante? O Sr. conseguiria selecionar uma frase de Guimarães Rosa que gostaria de ter escrito?
Eu aprendera antes com Vieira que literatura é linguagem. Achei esse mistério no Rosa. Ele acrescentou esta frase na nossa conversa: “Escrever é renascer”. Fiquei com essa frase na minha vida.

O Sr. escreve regularmente, todos os dias? Tem alguma rotina para escrever?
Escrevo, leio, pesquiso palavras das 7 horas até 11 horas. Pode ser que escreva alguma coisa também.

O grande repositório de sua obra se encontra nas recordações de infância? Ou o que aconteceu ontem pode ser objeto de poesia também?
Tudo pode ser objeto de poesia, mas no meu caso as percepções da infância costumam entrar no poema e até comandar.

O Sr. disse ter gostado muito de receber, recentemente, o Prêmio Nestlé de Literatura “porque, além de dinheiro, terá um edição especial que será distribuída para bibliotecas e escolas de todo o país”. O Sr. costuma receber cartas ou outras manifestações de seus leitores?
Recebi alguns telegramas de amigos me cumprimentando pelo prêmio. Prezo muito o Prêmio Nestlé porque sei que a escolha do livro é feita por intelectuais da melhor qualidade.

O cenário e as gentes do Pantanal estão muito presentes na sua obra. Atualmente o Sr. reside em Campo Grande. Ainda mantém contato permanente com o ambiente pantaneiro ou dele se vale mais por memória? Dá pra imaginar um Manoel de Barros longe do Pantanal?
Não tenho mais frequentado as terras e as águas do Pantanal. Mas sei que minhas palavras são nutridas e fertilizadas pelo chão, pelas águas e pela natureza pantaneira.

Que livros o Sr. pretende ler nos próximos meses?
Tenho lido muito pouco nestes últimos anos. Ando relendo mais. Já escrevi que o livro mais novo que tenho lido é o Velho Testamento.