Peliano costuma brincar que a poes-ia e foram os poetas que a trouxeram de volta! Uma de suas invenções mais ricas é conseguir por em palavras lirismos maravilhosos, aqueles que percebemos de repente e temos a impressão que não vamos conseguir exprimi-los. Exemplos: de Manoel de Barros -"Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura. De tarde o deserto já estava em nós"; de Ernesto Sabato - "Sólo quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para ... recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido"; de Thiago de Mello - "Faz escuro mas eu canto"; de Helen Keller - "Nunca se deve engatinhar quando o impulso é voar"; de Millôr Fernandes - "Sim, do mundo nada se leva. Mas é formidável ter uma porção de coisas a que dizer adeus". É como teria exclamado Michelangelo que não fora ele quem esculpiu Davi, pois este já estava pronto dentro da pedra, Michelangelo apenas tirara-o de lá. Então, para Peliano, o lirismo é quando nos abraça o mundo fora de nós, cochicha seu mistério em nossos ouvidos e o pegamos com as mãos da poesia em seus muitos dedos de expressão.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Giuseppe Ghiaroni


 
Depois

Depois de ter tentado e conseguido,
depois de ter obtido e abandonado;
depois de ter seguido e ter chegado;
depois de ter chegado e prosseguido!
Depois de ter querido e ter amado;
depois de ter amado e ter perdido;
depois de ter lutado e ter vencido;
depois de ter vencido e fracassado!

Depois que o sonho comandou: ''Avança!"
Depois que a vida ironizou:"Criança!"
Depois que idade sentenciou: ''Jamais!"...

Depois de tudo que escarnece e exalta,
depois de tudo, quando nada falta,
depois de tudo, falta muito mais!

Intermezzo

Um ligeiro intervalo de esperança
foi a nossa escapada da rotina:
cada dia uma glória repentina
cada noite a euforia da mudança.

Um ligeiro intervalo de esperança
e eu julguei ter achado o ouro e a mina.
Vi no teu rosto aquela luz divina,
voltei a ser poeta e a ser criança.

Foi a nossa embriaguez dos impossíveis,
ilusão de vencer os invencíveis
e de alcançar o que ninguém alcança.

Mas foi bom.Foi tão mais do que mereço,
que hoje,em desespero,eu te agradeço
um ligeiro intervalo de esperança!

Continuidade

Existe um cão que ladra quando eu passo,
como se visse um bêbado, um mendigo.
E, no entanto, esse cão foi meu amigo
como tantos amigos que ainda faço.


À noite, com que alegre estardalhaço
vinha encontrar-me no portão antigo,
enquanto a dona vinha ter comigo
e, sorrindo, apoiava-se ao meu braço.

Hoje ele faz a outro a mesma festa
e ela o mesmo carinho, tão honesta
como se nem notasse a transição.

Eu rio dessa triste brincadeira.
mas quando uma mulher é traiçoeira
não se pode confiar nem no seu cão!


Pontos de vista


Na minha infancia,quando eu me excedia
quando eu fazia alguma coisa errada
se alguém ralhava minha mãe dizia
-Ele é uma criança,não entende nada!

Por dentro eu ria satisfeito e mudo.
Eu era um homem,entendia tudo.

Hoje que escrevo poemas
e pareço ter tido algum estudo
dizem quando me veem com os meus problemas:
-Ele é um homem,ele entende tudo!

Por dentro,alma confusa e atarantada
eu sou criança,não entendo nada.
...

Ana Lucia Sorrentino


A noite seduz

Um brinco de pérola e diamante
reluz na pele negra da noite.
O sabiá que traz meu sono
nas sempre altas madrugadas,
hoje me falta,
emudecido, assustado.
Creio ter se enamorado.
Talvez não esperasse,
não havendo hoje festa,
um céu vestido a rigor.
Talvez meu fiel sabiá
tenha hoje calado de amor...

Sem volta

Eu me queria como fui um dia,
quando ainda não sabia
coisas que depois vim a saber.
Eu me queria como antes de perceber
o que depois percebi,
sem nem ao menos querer.
Eu me queria como fui um dia:
inocente, crédula, pia.
Se a maturidade castiga

com a decepção do descrer,
a senilidade talvez seja
um indulto da natureza,
pelo envelhecer.
Custando a morte a chegar,
já fartos de aprender,
nela descansamos,
conseguindo, enfim, esquecer.
Flutuemos

Quando tudo que não foi
não mais tiver importância
nos vãos espaços das vãs lembranças;
quando tudo o que há de vir
não tiver mais o poder
de causar qualquer receio
e não mais puser a perder
do sono de hoje o esteio;
quando não mais brotar embriaguez
da fértil semente do olhar alheio
e como uma flor cansada
a vaidade murchar de vez;
quando o necessário for
vergonhosamente flagrado
em sua mais absoluta inutilidade
e as fugidias verdades compreenderem
de todas as coisas o caráter passageiro;
quando o que restar for apenas

movimento
talvez, então,
se instale, enfim, a leveza.
Flutuaremos no nada
sorrindo zombeteiramente
das bobagens da vida.

Maturidade

Num susto me acomete
inesperado recato.
Um bem-vindo autoamor,
um quê de orgulho e vaidade.
Súbita maturidade,
contrariando o esperado,
não vem aos poucos,
a cada ruga
ou fragilidade.
Vem de uma só vez,
inteira e com gosto de novidade.
Me possui,
me traz cuidados comigo,
mitiga minhas verdades,
e me imprime dignidade.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

José Carlos Peliano


Índio e víndio


o mundo não é lindo
é líndio
o sonho não vai indo
vai índio
o sol não está rindo
está ríndio
meu amor não vem vindo
vem víndio
mais que unindo
vamos nos uníndio
não há esperança ainda
há esperança aíndia!!!

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Kátia Drummond

A menina afegã, de Steve McCurry
 

Mãe

Esta vida que me deste, eu não a entendo.
Busco encontrar explicações, a esmo.
Não há qualquer vestígio. Só suspeitas.
Uma razão sequer. Procuro em vão.
Quando partires, se me antecederes,
dá-me um sinal de vida, qualquer toque.
Compreenderei quem sabe, então,
essa amargura de vir e ir,
assim, sem mais nem menos.
Como um inseto trôpego,
um verme, um cão.

Enquanto Ana Terra não vem

Já vivi a intensidade exaustiva dos retiros.
Recitei todas as preces e tomei todos os votos.
Jejuei em busca de sanar as dores deste mundo.
Não matei, não roubei, não menti.
Cometi virtudes, purifiquei o corpo e a alma.
Realizei sonhos e multipliquei amores.
Convivi com todos os seres vivos e mortos.
Só não amei a Deus sobre todas as coisas.

Agora, resta-me estirar a rede na varanda,
acender a lua, deitar e sonhar.

Enquanto Ana Terra não acende o sol.

Brisa

Você acorda cantando,
como faz o passarinho,
anunciando a chegada
do dia, devagarinho.
O sol chega e você cala.
E pra ouvir a sua voz,
desenho o sol indo embora,
faço outra lua lá fora,
desenho mil rouxinóis.
Amanhece de mansinho
e o sol brilha novamente.
Parece que a terra inteira
está brotando de repente.
O mato cheira mais forte,
a chuva cai levemente,
os carneirinhos no céu
viram flores, viram gente.
Lá vai o dia indo embora,
seguindo pra outro lugar.
A mansa noite lá fora
está começando a chegar.
Enquanto você descansa
do seu dia de aprendiz,
eu desenho outra esperança
onde você é criança,
onde você é atriz.

Vida integral

Você é flor de açucena
Planta verde de quintal
Filhote de passarinho
Cigarra no mangueiral
Peixe de fundo de rio
Mel de abelha mandaçaia
Beija-flor no milharal.

Você tem cheiro de campo
Brilho de sol no trigal
Gosto de caldo-de-cana
Cheiro de flor matinal
Você é meu passarinho
É meu cavalo-marinho
É meu mundo vegetal.

Quero ver você crescer
Como cresce a esperança
E ver você renascer
No seu jeito de criança
Transformar a vida inteira
Água, terra, fogo e ar
Quero ver você viver
Quero ver você brilhar.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Augusto Meyer






Realejo
... e esse realejo
como range, alegre,
mói minha alma leve
como a luz do céu...
Dançam figurinhas
sobre a caixa, lindas
como um brinquedinho...
... gira, gira
como os dançarinos,
a minha alma leve
como os brotos novos,
como a igreja nova...
Bimbalhar de sinos,
bimbalhar sonoro,
moças tagarelas,
(quanta namorada!)
campos de cevada...
... realejo alegre,
toda a primavera,
delirantemente,
reza, canta, reza,
canta a missa verde...

 Chaminé


A chaminé sobe com seu imenso pesadelo de fumaça,
enovelada em penacho que rola e espirala,
a chaminé vermelha sobre a arquejante forja da usina,
enquanto a chuva bate o seu rufo inocente
sobre as relhas de zinco,
sobre as casas baixas, mansamente.
Cha-mi-né.
Torre nova de uma igreja sem fé,
como um canhão monstruoso de tijolos,
vomita, ameaça,
pragueja dia e noite a praga imensa da fumaça...
Tapando a torre da catedral,
sonhando ao longe um sonho de rapina,
imensamente — sobe a chaminé,


Gaita


Eu não tinha mais palavras,
Vida minha,
Palavras de bem-querer;
Eu tinha um campo de mágoas,
Vida minha,
Para colher.

Eu era uma sombra longa,
Vida minha,
Sem cantigas de embalar;
Tu passavas, tu sorrias,
Vida minha,
Sem me olhar.

Vida minha, tem pena,
Tem pena da minha vida!
Eu bem sei que vou passando
Como a tua sombra longa;
Eu bem sei que vou sonhar
Sem colher a tua vida,
Vida minha,
Sem ter mãos para acenar,
Eu bem sei que vais levando
Toda, toda a minha vida,
Vida minha, e o meu orgulho
Não tem voz para chamar

Querência

Paisagem longa, na ondulação das coxilhas longas...
Debruns de caponetes...
Longes...
Oh! linhas suaves, como se houvesse
em cada coxilha uma saudade do chão
e alvos capões de nuvens muito brancas
na pampa azul de um infinito azul...

Emílio Moura



Três caminhos

Percorri tantos caminhos,
tantos caminhos andei.
O primeiro era de nácar,
de rosa pura o segundo.
O terceiro era de nuvem,
no terceiro te encontrei.
O primeiro já trazia
teu nome brilhando no ar.
Não era nome de terra:
cantava coisas do mar.
Logo senti que o segundo
já era estrada de encantar.
Mas o terceiro, o terceiro
quantas voltas não foi dar!
Deixou meu corpo na terra,
meu coração no alto-mar.
Virou vento, virou bruma,
perdeu-se, rápido, no ar.


Poema


De repente volta
o que nem sei se foi
sonhado ou vivido.
Que apelo me chega
desta voz que emerge
de tão fundas águas?
Alguém esquecido
no fundo dos tempos?
Meu anjo vencido?
Meu duplo secreto?
Que apelo indizível
me chama, me grita
que esqueça, que durma,
ou me divida em tantos
que nenhum seja eu?

Nem eu, nem ninguém.

À boca da noite


Não olhes: é a noite
completa que tomba.

Não olhes: é a estrada
que, súbito, acaba.

Não olhes: é o anjo,
teu anjo que chora.

Não olhes.

Aqui termina o caminho


Os sinos cantando, as sombras todas se diluindo
dentro da tarde. Dentro da tarde, o teu grave pensamento de exílio.

Por que ainda esperas? Aqui termina o caminho,
aqui morre a voz, e não há mais eco nem nada.

Por que não esquecer, agora, as imagens que tanto nos perturbaram
e que inutilmente nos conduziram
para nos deixar, de súbito, na primeira esquina?
Essa voz que vem, não sei de onde,
esses olhos que olham, não sei o quê,
esses braços que se estendem, não sei para onde...

Debalde esperarás que o oco de teus passos acorde os espaços que já não têm voz.
As almas já desertaram daqui.
E nenhum milagre te espera,
nenhum.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Rubén Martínez Villena


Andante Meridiano

Se extingue lentamente la gran polifonía
que urdió la multiforme canción de la mañana,
y escúchase en la vasta quietud del mediodía
como el jadear enorme de la fatiga humana.

Solemnidad profunda, rara melancolía.
La capital se baña de lumbre meridiana,
y un rumor de colmena colosal se diría
que flota en la fecunda serenidad urbana.
 
Flamear de ropa blanca sobre las azoteas;
los largos pararrayos, las altas chimeneas,
adquieren en la sombra risibles proporciones;

el sol filtra en los árboles fantásticos apuntes
y traza en las aceras siluetas de balcones
que duermen su modorra sobre los transeúntes.

Soneto

Te vi de pie, desnuda y orgullosa,
y bebiendo en tus labios el aliento,
quise turbar con infantil intento
tu inexorable majestad de diosa.
 
Me prosternó a tus plantas el desvío
y entre tus muslos de marmórea piedra,
entretejí con besos una hiedra
que fue subiendo al capitel sombrío.

Suspiró tu mutismo brevemente,
cuando la sed del vértigo ascendente
precipitó el final de mi delirio;
 
y del placer al huracán temiendo,
se doblegó tu cuerpo como un lirio
y sucumbió tu majestad gimiendo.

Morendo Nocturno

Un cintilar de estrellas en el azul del cielo
y una imponente calma de humanidad rendida,
mientras el mundo duerme bajo el nocturno velo,
como cobrando fuerzas para seguir la vida.

Alguna vaga y sorda trepidación del suelo
rompe la paz augusta que en el silencio anida,
y la lujuria humana, perennemente en celo,
transita por las calles de la ciudad dormida.

Ecos, roces, rumores... Nada apenas que turbe
el tranquilo y sonámbulo reposar de la urbe;
y todo este silencio de noche sosegada,
 
en donde se adivinan angustias y querellas,
es el dolor oculto de la ciudad callada
¡bajo la indiferencia total de las estrellas!

El Campanario del silencio

 Yo tuve un campanario monumental, en cuyas
campanas di la música de mis anhelos nobles;
aleccioné mis bronces en risas de aleluyas,
ángelus melancólicos y lágrimas de dobles..
.
Después la irremediable necesidad del toque
forzó el pregón metálico de mis impulsos bajos;
y de mi torre a vuelo, con el continuo choque,
saltaron las cansadas lenguas de mis badajos...
 
Y hoy sufro de mis versos volteando en el silencio,
campanas mutiladas; no más que yo presencio
la danza de mis bronces en ímpetu insensato;

y oigo -- bajo mis sienes -- inexorable y rudo
clamar, en un glorioso vértigo de rebato
¡el toque inverosímil del campanario mudo!...

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Lila Ripoll


Floresta

De olhos fechados
mergulho em teu ventre.
perfumes se encontram
no meu rosto. Braços
apanham meus cabelos.

Braços leves, pesados,
amorosos ou rudes,
Braços de cedro
ou espinheiro,
de parasitas
ou cravos selvagens.

No ar e na boca
um gosto de erva
amanhecida. Um gosto
de coisa lavada.
Um ar de chuva
e terra. Um gosto
de mundo amanhecendo.

Oh, enveredar
por esse mundo livre
e ser uma entre as árvores
que formam o volume
do teu rosto.

Enveredar por esse mundo livre.
Conhecer a geografia
do teu peito. Misturar-me
à conversa das folhas
e adivinhar o casamento
secreto das raízes!

Vim ao mundo em agosto
 
Sou triste de nascença e sem remédio.
Vim ao mundo no triste mês de agosto
o mês fatal das chuvas e do tédio,
e nasci quando o sol estava posto.
Vim ao mundo chorando... (o meu presságio!)
Um vento mau marcava na vidraça
o plangente compasso de um adágio,
anunciando agoirento uma desgraça.
Sou triste. É irremediável este mal.
E eu não quero curar minha tristeza.
Só ela para mim tem sido leal,
Na minha via-sacra de incerteza.
Sou triste de nascença. É mal sem cura.
A vida não desfez meu nascimento.
Sou a menina triste e sem ventura,
que em agosto nasceu, com chuva e vento.
 
Grito
 
Não, não irei sem grito.
Minha voz nesse dia subirá.
E eu me erguerei também.
Solitária. Definida.
As portas adormecidas abrirão
passagem para o mundo
Meus sonhos, meus fantasmas,
meus exércitos derrotados,
sacudirão o silêncio de convenção
e as máscaras de piedade compungida.
Dispensarei as rosas, as violetas,
os absurdos véus sobre meu rosto.
Serei eu mesma. Estarei
inteira sobre a mesa.
As mãos vazias e crispadas,
os olhos acordados,
a boca vincada de amargor.
Não. Não irei sem grito.
Abram as portas adormecidas,
levantem as cortinas,
abaixem as vozes
e as máscaras —
que eu vou sair inteira.
Eu mesma. Solitária.
Definida.

Poesia

Toda a poesia do poema
não vale a outra – a verdadeira.
A que não consegue transpor
a face fria, que ficou ignorada.
A que não pode ser desprendimento,
mas apenas subir como perfume...

As palavras estão gastas
e sem cor. As palavras
são suspiros ritmados,
benevolentes fantasmas
bem vestidos.

A verdadeira poesia – a invisível,
toca de leve a fímbria
dos meus versos. Mas permanece
intacta no seu mundo.

Denise Emmer


A carta

Zarparam meus navios mar adentro
Levando minha carta sem palavras
Quando o dizer tudo é dizer nada
Poemas de horizontes reticências

Se posso discorrer a transparência
Já não me afogo em frases para tanto
E o que posto é uma folha em branco
Para dizer-te árvores sem flores

Não traço dores tampouco alegrias
Antes sorria agora sou um livro
Que abriga extensas pausas sem ruído
Quando o dizer mais é dizer findo.

Os animais que morrem

Os animais que morrem
viram luzes
assombros tão pequenos
entre escuros
espectro sereno
sobre muros

os animais que morrem
são futuros.

Vias avessas

Chegas por vias avessas escuto teus passos surdos
Deuses que movimentam a incoerência do mundo
Regem relógios quietos de horas que não existem
Feliz a insanidade das multidões irascíveis

Se há mares em teus abraços mergulho em sóis afundados
Decifro a nova linguagem que inutiliza tratados
E despedaça países fundidos em calmarias
O amor desgoverna os ventos assombros em abadia

Viajo os rumos trocados as ruas que se invertem
Distâncias que se encontram pernas que se perseguem
Olhos que confabulam dentro de rios quentes
Percebo outras cidades nos vãos de uma nova lente

O que me faz alcançar as caravelas aéreas
Andaimes velozes cumes a indizível matéria
São teus incêndios a luz que espalhas pelo Universo
E por meu corpo acendendo meus lampiões submersos.

Tarde no mar

Tarde e moleza marolas e mascavo
Nada suponho nada sei nada respondo
Não sei o nome do mundo
E seu patrono

Leio jornais em branco folhas velhas
Cartas passadas notícias reviradas
Do que me valem as novas utopias
Se o que me traz o mar
É uma garrafa vazia.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Ruy Espinheira Filho





Soneto do amor e seus sóis

Eram teus olhos de água, olhos de água
ensombrada de folhas, eram teus
olhos de água marinha, eram teus olhos
de água límpida, ou turva, eram teus olhos

de água cintilante de tão negra,
eram teus olhos de água luminosa
como só umas raras dessas brisas
chamadas alma, eram os teus olhos

— e eis que teus olhos ainda são, que sempre
outros olhos e os mesmos: o amor
diverso e idêntico no azul do peito

a amanhecer-me, a moldar-me as
asas de mergulhar no chão profundo
e patas de galgar os altos ventos.

Soneto do Quintal
 
Ao recordar a moça, eu me comparo
ao cão que vejo a interrogar a brisa.
O que é mal comparar: bem mais precisa
é a mensagem de odores que o faro

decifra. E então medito sobre o claro
ser desse cão, e invejo essa precisa
vocação de existir. E ausculto a brisa
e nada nela encontro. Nada. E paro

de lembrar e pensar. Há mais profícuas
ocupações. Exemplo: só olhando
estar. Cão. Nuvens. Ramos. E, dormindo,

um gato. E essas formigas — três — conspícuas,
vestidas a rigor, deliberando
em torno de uma flor de tamarindo.

O Poeta em sua varanda

Se ajeita na cadeira reclinável,
entre uma saudade e uma quimera,
sob outono que sabe a primavera
e agora o afaga com a mais amorável

tarde do mês. Aliás, todo ele amável,
este abril, ele pensa, já a quimera
enviando a pastar em outra era,
que à hora basta esta admirável

lembrança que o embala. E eis que seu ser
é como cristalina clarabóia
banhada pelo sol do amanhecer,

enquanto, a essa luz de ouro e jóia,
serenamente ele começa a ler
uma carta de amor vinda de Tróia.

 Blind Borges

A vasta e vaga morte, esse outro sonho,
não é só outro sonho: é a mais remota
ilha de ouro a que nossa derrota
nos leva, inexorável, sonho a sonho.

Latidos pelos cães, sonho após sonho,
sonhamos. Esta é a vida, a vela, a rota
do homem: sonhar. E em áurea praia ignota
sonha o que sonha o sonhador, que é sonho.

Isto é o que pulsa em nós: o ansiado ouro
— distante e aqui, no coração —, tesouro
cuja procura tece a nossa sorte;

rumo que a alma singra e sagra em ouro
até chegar enfim a esse tesouro
incorruptível que nos sonha a morte.

Ribeiro Couto

 

O longe e o perto

Logo que a noite envolve em sombras o jardim
Parece que um mistério estranho me rodeia,
Bocas de flores se entreabrem para mim,
E não sei de quem são estes passos na areia
Nem este murmurar de uma queixa sem fim.

Como a seiva da terra alimenta as raízes,
Uma seiva secreta enche meu coração.
Deve ser o tal "gosto amargo de infelizes",
Plantinha sempre verde entre as pedras do chão,
Cujo travo provei em todos os países.

Tudo que pude fiz para não ser assim,
Mas não posso esquecer o longe pelo perto;
Os que amei e perdi dormem dentro de mim;
A culpa é minha, sou eu mesmo que os desperto,
Logo que a noite envolve em sombras o jardim.

Anjo de outrora


O anjo de outrora, adormecido na minha alma,
Acordou esta noite e espiou nos meus olhos:
A lágrima caída ainda há pouco era dele.


Foi ele que a esqueceu à porta dos meus olhos,
Com o discreto pudor com que à porta da igreja
Deixamos cair a esmola na mão de um pobre.
 
Esquecer


Longos dias de sonho e de repouso...
Ócio e doçura... Sinto, nestes dias,
Meu corpo amolecer, voluptuoso,
Num desfalecimento de energias.

A ler o meu poeta doloroso
E a fumar, passo as horas fugidias.
Entre um cigarro e um verso vaporoso
Sou todo evocações e nostalgias.

Quando por tudo a claridade morre
E sobre as folhas do jardim doente
A tinta branca do luar escorre,

A minha alma, a mercê de velhas mágoas,
É um pássaro ferido mortalmente
Que vai sendo arrastado pelas águas.
 
Ilha distante


Ilha de melancolia,
Sem portos e sem cidades —
Só praias de areia fria
E coqueiros com saudades;

Praias de uma areia morta,
Conchas que ninguém apanha,
Coqueiros que o vento corta,
Brandido por mão estranha;

Morta já à flor da onda
A espuma a sumir na areia;
Nenhuma voz que responda
Aos ais que o vento semeia;

Ilha deserta, deserta,
Nem sequer junto a outra ilha;
E à noite uma luz incerta
Que não se sabe onde brilha;

Ilha de um só habitante,
Com seu mar fora do mundo,
Mar que na maré vazante
Cava cem braças de fundo —

Ainda hás de ser a alegria
De um vaporzinho cargueiro
Que a ti chegará um dia
Perdido no nevoeiro.