Peliano costuma brincar que a poes-ia e foram os poetas que a trouxeram de volta! Uma de suas invenções mais ricas é conseguir por em palavras lirismos maravilhosos, aqueles que percebemos de repente e temos a impressão que não vamos conseguir exprimi-los. Exemplos: de Manoel de Barros -"Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura. De tarde o deserto já estava em nós"; de Ernesto Sabato - "Sólo quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para ... recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido"; de Thiago de Mello - "Faz escuro mas eu canto"; de Helen Keller - "Nunca se deve engatinhar quando o impulso é voar"; de Millôr Fernandes - "Sim, do mundo nada se leva. Mas é formidável ter uma porção de coisas a que dizer adeus". É como teria exclamado Michelangelo que não fora ele quem esculpiu Davi, pois este já estava pronto dentro da pedra, Michelangelo apenas tirara-o de lá. Então, para Peliano, o lirismo é quando nos abraça o mundo fora de nós, cochicha seu mistério em nossos ouvidos e o pegamos com as mãos da poesia em seus muitos dedos de expressão.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Luis Turiba

Soneto da gula cósmica
p/ Vânia

A lua noiva se encheu de gula cósmica
Dos Baixos Gáveas aos Altos Paraísos
Floresta tua mística pulsa polvorosa
De tantos pius uivos silvos ais gemidos

Havia algo a mais no céu além da noite
Pra lá dos discos voadores e das mandalas
O sol engolido em seco e o bicho solto
E eu ouvindo estrelas em tuas sandálias

Tua aninha se aninhou em meu aninhante
Nhô nô sabia um quatro e não mais sozinho
Olhos de milho que brilham em voz arfante

Goya goiana ioga flora, meu araçacinho
Brinco de água, bacupari, ingá. Avante!!
As tuas trilhas trilharam meus caminhos

O poeta e a alquimista
bebo água como te bebo
límpida líquida corrente
cada gole goela abaixo
fluidos positivos de saúde
suor e saudades
folhas cubram
nossos caminhos
de clorofila e paixão

Garota do Parque
Toda vez que
estou no parque
e você passa
no seu compasso de garça
todo parque se disfarça
em farta passarela
tudo pira tudo paira
a tua espera
do pedalar da sandália
ao coração da donzela
sopra o verde
sopra o parque

sopra o tempo
só pra ela
toda vesz que você parque,
Já era......

Terrorismo

Explosões: fim de mundo
no amor há vermelho
a cor do Sol: narciso
como um céu: espelho

terça-feira, 29 de maio de 2012

Dylan Thomas

Este pão que venho abrir

Este pão que venho abrir foi outrora centeio,
este vinho sobre uma ramada desconhecida
ficou submerso nos seus frutos;
o homem em cada dia, em cada noite o vento
arrancaram a alegria dos cachos e derrubaram as searas.


Com o vinho, outrora o sangue de estio
palpitava na carne que ornamentava a videira,
outrora neste pão
era feliz sob o vento o centeio;
mas o homem despedaçou o sol e abateu o vento.


Esta carne que despedaças, este sangue
que traz a desolação pelas veias,
eram os cachos e o centeio
nascidos das raízes e da seiva dos sentidos;
este meu vinho que bebes, este pão de que te alimentas.


Este lado da verdade

Este lado da verdade,
Meu filho, tu não podes ver,
Rei de teus olhos azuis
No país que cega a tua juventude,
Que está todo por fazer,
Sob os céus indiferentes
Da culpa e da inocência
Antes que tentes um único gesto
Com a cabeça e o coração,
Tudo estará reunido e disperso
Nas trevas tortuosas
Como o pó dos mortos.

O bom e o mau, duas maneiras
De caminhar em tua morte
Entre as triturantes ondas do mar,
Rei de teu coração nos dias cegos,
Se dissipam com a respiração,
Vão chorando através de ti e de mim


Em meu ofício ou arte taciturna

Em meu ofício ou arte taciturna
Exercido na noite silenciosa
Quando somente a lua se enfurece
E os amantes jazem no leito
Com todas as suas mágoas nos braços,
Trabalho junto à luz que canta
Não por glória ou pão
Nem por pompa ou tráfico de encantos
Nos palcos de marfim
Mas pelo mínimo salário
De seu mais secreto coração.


Escrevo estas páginas de espuma
Não para o homem orgulhoso
Que se afasta da lua enfurecida
Nem para os mortos de alta estirpe
Com seus salmos e rouxinóis,
Mas para os amantes, seus braços
Que enlaçam as dores dos séculos,
Que não me pagam nem me elogiam
E ignoram meu ofício ou minha arte.


A mão ao assinar este papel

A mão ao assinar este papel arrasou uma cidade;
cinco dedos soberanos lançaram a sua taxa sobre a respiração; duplicaram o globo dos mortos e reduziram a metade um país;
estes cinco reis levaram a morte a um rei.


A mão soberana chega até um ombro descaído
e as articulações dos dedos ficaram imobilizadas pelo gesso;
uma pena de ganso serviu para pôr fim à morte
que pôs fim às palavras.


A mão ao assinar o tratado fez nascer a febre,
e cresceu a fome, e todas as pragas vieram;
maior se torna a mão que estende o seu domínio
sobre o homem por ter escrito um nome.


Os cinco reis contam os mortos mas não acalmam
a ferida que está cicatrizada, nem acariciam a fronte;
há mãos que governam a piedade como outras o céu;
mas nenhuma delas tem lágrimas para derramar.

sábado, 26 de maio de 2012

Alice Ruiz

Se

se por acaso
a gente se cruzasse
ia ser um caso sério
você ia rir até amanhecer
eu ia ir até acontecer
de dia um improviso
de noite uma farra
a gente ia viver
com garra

eu ia tirar de ouvido
todos os sentidos
ia ser tão divertido
tocar um solo em dueto

ia ser um riso
ia ser um gozo
ia ser todo dia
a mesma folia
até deixar de ser poesia
e virar tédio
e nem o meu melhor vestido
era remédio

daí vá ficando por aí
eu vou ficando por aqui
evitando
desviando
sempre pensando


Milágrimas

em caso de dor, ponha gelo, mude o corte de cabelo
mude como o modelo
vá ao cinema, dê um sorriso, ainda que amarelo
esqueça seu cotovelo
se amargo for já ter sido, troque já esse vestido
troque o padrão do tecido
saia do sério, deixe os critérios, siga todos os sentidos
faça fazer sentido
a cada mil lágrimas sai um milagre
caso de tristeza, vire a mesa, coma só a sobremesa
coma somente a cereja
jogue para cima, faça cena, cante as rimas de um poema
sofra apenas, viva apenas
sendo só fissura, ou loucura, quem sabe casando cura
ninguém sabe o que procura
faça uma novena, reze um terço, caia fora do contexto
invente seu endereço
a cada milágrimas sai um milagre
mas se, apesar de banal,
chorar for inevitável
sinta o gosto do sal, do sal, do sal
sinta o gosto do sal
gota a gota, uma a uma
duas, três, dez, cem, mil lágrimas
sinta o milagre
a cada mil lágrimas sai um milagre
a cada milagrimas.


Discreto

até que foi bem discreto
deixando, ao partir, intenso
muito do seu segredo
nem chegou a tempestade,
esses excessos do vento
foi um corte pequeno
nem dor a mais, nem de menos
foi porque tinha que ir
foi porque tinha que ser
mas está aí a cicatriz
que não deixa mais mentir
se foi ou não foi feliz


Vê se me esquece

Já que você não aparece,
venho por meio desta
devolver teu faroeste,
o teu papel de seda,
a tua meia bege,
tome também teu book,
leve teu ultraleve
carteira de saúde,
tua receita de quibe,
de quiabo, de quibebe,
do diabo que te carregue,
te carregue, te carregue
teu truque sujo, teu hálito,
teu flerte, tua prancha de surf,
tua idéia sem verve,
que nada disso me serve
Já que você não merece,
devolva minhas preces,
meu canto, meu amor,
meu tempo, por favor,
e minha alegria que,
naquele dia,
só te emprestei por uns dias
e é tudo que lhe pertence

PS: Já que você foi embora por que não desaparece?

 

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Dominguinhos - Músico Poeta Brasileiro (MPB)

http://youtu.be/2I7Z4Bq6Whs


De volta pro aconchego

Estou de volta pro meu aconchego
Trazendo na mala bastante saudade
Querendo um sorriso sincero
Um abraço para aliviar meu cansaço
E toda essa minha vontade
Que bom poder estar contigo de novo
Roçando teu corpo e beijando você
Pra mim tu és a estrela mais linda
Teus olhos me prendem, fascinam
A paz que eu gosto de ter.
É duro ficar sem você vez em quando,
Parece que falta um pedaço de mim.
Me alegro na hora de regressar,
Parece que vou mergulhar na felicidade sem fim.

Quem me levará sou eu

Amigos a gente encontra
O mundo não é só aqui
Repare naquela estrada
Que distância nos levará
As coisas que eu tenho aqui
Na certa terei por lá
Segredos de um caminhão
Fronteiras por desvendar
Não diga que eu me perdi
Não mande me procurar
Cidades que eu nunca vi
São casas de braços a me agasalhar
Passar como passam os dias
Se o calendário acabar
Eu faço contar o tempo outra vez, sim
Tudo outra vez a passar
Não diga que eu fiquei sozinho
Não mande alguém me acompanhar
Repare, a multidão precisa
De alguém mais alto a lhe guiar
Quem me levará sou eu
Quem regressará sou eu
Não diga que eu não levo a guia
De quem souber me amar

Lamento sertanejo

Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga e do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigo
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado
Por ser de lá
Na certa, por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão, boiada caminhando à esmo

Tô indo embora

Ah to indo embora
Estrada a fora como diz o cantador
Ah vou nessa manha
Légua tamanha e vou em busca de um amor
Vou caminhando, vou ligeiro feito o vento
Vou com esse pensamento de encontrar aquele amor
Saudade dói, machuca a gente e fere o peito
E o coração bate sem jeito quando lembra um grande amor
Estrada a fora com a viola na sacola
Passo o dia, conto as horas no relógio pra te ver
Olho pro céu e vejo a luz que me alumia
Vejo a estrela guia me levando até você
Felicidade é ver brilhar tudo de novo
O nosso amor é tão gostoso e faz o coração gemer
A solidão e a tristeza eu joguei fora
E a natureza agora chora de alegria de te ver

quinta-feira, 24 de maio de 2012

José Carlos Farias Vieira

Para sempre

mais que amor
adoração
coisa eterna
luz de estrela

mais que beijo
entrega
encontro de alma
na rede  amarela 
carícia de janela

mais que juntos
únicos, unidos
coração, sangue
música, aquarela

mais que perfeitos:
duas vidas
que caminham lado a lado
desde que a terra
era somente bela...


Cardiopatia (ou réquiem para um velho punk)

Morreu numa madrugada quente
a lua, talvez minguante
ao lado, uma garrafa de vinho pela metade
a taça em cacos jazia no tapete cinza.
Perto do travesseiro
o livro Ao sul de lugar algum,
de Charles Bukowski:
"  Randall era conhecido por ser
um solitário convicto, um bêbado,
um homem amargo,
mas seus poemas eram crus e honestos,
simples e selvagens..." 
morreu
coração explodiu, apesar da pouca idade
virou uma gelatina disforme, dentro da carne enrugada.
morreu
tinha uma amante mais velha
a cada 15 dias, o visitava
ela gemia, urrava, suava, chorava, ria
e falava de eternidade.
Deixava sempre dinheiro
dentro do aquário vazio de água e  cheio de plantas de plástico
depois  ia embora para a casa do marido em seu sedã dourado.
morreu
um tumor poderia levá-lo mais tarde
uma facada de amor ao lado do baço também
um susto, um tique, um teco.
morreu
como morre um inseto
cego diante da luz de um automóvel
anjo no chão depois do pecado.
Os anéis de prata brilhavam nos dedos já frios e entrevados
uma caneta, uma carta de amor por começar
o papel em branco.
sim, a morte era branca como aquela folha
inútil, vaga, vazia
inexorável vácuo sem volta
morreu
diante do espelho silencioso
de um quadro de Iolovitch
entre remédios e remorsos.
a vida é um clichê
uma mentira encenada no palco
para uma plateia de medíocres
só os medíocres sobrevivem tanto
morreu
era uma vida de pequenos suicídios diários:
acordar, mijar, gritar o nome da melhor mulher
voltar para a cama
tropeçando em amores deixados nas gavetas do passado
aaaahhh! desespero!!
morreu
sem perdão para a culpa dos outros
não um canalha, ou um cristo, ou um buda
mas um poeta enganado, desenganado
um mito do rock sem comprimidos e seringas
morreu
não havia vida há muito
rastejava pelos bares
vomitava palavras nos esgotos dos saraus
enfrentava o hálito da morte todas as madrugadas
deixou cicatrizes em diversos seios
mordidas insanas em batom azul
sinais cravados para sempre
em peles lisas e perfumadas
Morreu...
O sol já vai nascer...
E as moscas lambem os olhos secos...

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Reynaldo Jardim

Receituário

De que fel preparava
as porções que servia?
O papel que rasgava
era eu que escrevia?
De que erva era o chá
que o bule fervia?
De que águas o mar
que cortava de fria?
De que sal o tempero
que azedava o meu dia?
De que fogo o luar
que furioso latia?
De que medos a tarde
mastigava e mordia?
De que arte marcial
o furor apreendia?
De que livro infernal
as lições consumia?
De que bem, de que mal
se chorava, se ria?
De que torvo quintal
suas flores colhia?

Desamores

Quero me despojar
de tudo o que não tenho.
Limpar meus horizontes
de artes e de engenho.
Quero me desfazer
de tudo o que não tive.
A certeza certeira
de quem viveu não vive.
Quero me entristecer
de alegria e calma.
Olhar no espelho e ver
a cara de minha alma.
E quero dessofrer
o que nunca sofri.
O gosto do prazer:
sumo de sapoti.

Não somos um

Não lhe direi o impossível,
a verdade alastrou-me:
o seu valor equivale
à densidade dos outros.
Não somos um. Que outrora
éramos um, ou pensamos
sermos eu, você, o outro,
três elementos distintos.
Cada movimento teu
altera, sem restrição,
o passo próximo dado
pelo seu pai ou amigo.
A função é coligada,
contínua, una, solúvel,
se arrebentarmos todos,
você se dissolverá.
Calarei o impossível
a multidão alastrou-me.
O meu valor equivale
à conjunta redenção.

A coisa útil

Um fruto (ou mesmo o pão)
é útil à proporção que alimenta.
A couve-flor (ou mesmo o ar)
é bela porque germina.
Assim o trigo e o canavial,
o café e o porto,
a mulher e o tempo.
Sementes de gordos horizontes.
Comei deste poema
um gomo ou a laranja integral.
O pó não alimenta,
mas na terra o pasto viceja.
No pensamento vazio nada vive,
mas onde houver substância,
ali o alimento existe.
Mastigai o poema,
com casca, polpa, germens, ácidos.
Os resíduos seguirão o doloroso fim.
A seiva enriquecerá teu plasma sanguíneo:
em ferro e iodo,
em sol e tempo
e horizontes palpáveis.
Uma fruta (ou mesmo a harmonia),
o agrião, as greves e as alfaces,
- palavras indigestas à poesia…
No entanto, o nutritivo poema se fermenta
e sobre cidades, soldado, fábrica, menino,
explica a anemia,
nutre a revolução.

José Carlos Capinam

Poema intencional

Há em cada substância a sua negativa
e a possibilidade de processo.

Processo inexorável a ir ao fim
meta a ser de pão e flores:

A rosa será uma outra rosa
e nós já não seremos

vejo nos olhos tristes
um filho possível

vejo na árvore antiga do parque,
uma cadeira, uma muleta, mas sobretudo um aríete

descubro na boca angustiada
o hino pronto e pesado:

é inevitável o acontecimento
mas procuro ser um elemento,

Carrego em mim a utilidade
sei que posso dar existência

e na minha total renúncia
utilizo-me para um bem maior:

tenho que colher a rosa
e transformá-la

tenho que possuir Maria
e dar-lhe um filho

tenho que transformar a árvore do parque
em cadeira, em muleta mas, sobretudo em aríete.

Aprendizagem

(I)
Como entre homem e ave sobrevive imagem
busquei em mim, e éramos parecidos
mas, quando edifiquei, achei-me
pois cada espécie está em seu ato.

O homem é um ato homem. o pássaro, um ato pássaro.

(II)
Das coisas mais simples minha textura tornou-se
tanto da iniciação a severidade do que sei
(o homem faz a bala, a bala mata o homem
derruba-se o cavalo, cai o rei).

Na premissa de noites custosas
aprendi meu rosto, os olhos e mais sentidos,
não nascendo a vida em episódios
mas em ciclos, em fases, dolorosos ciclos de noite.

A vida é consciência de seu exercício
e até saber-se mais homem que ave
é preciso sensibilidade como peixes
e o vínculo da prática à própria imagem.

(III)
Agora que me sei não pássaro
mas homem ato, guardando vínculos
sou um gesto particular dos atos
do homem geral em geral ofício.

Sou assim compreendido de outros.
O que eu seria outro ser não fôra,
embora juntos na inteireza do todo,
diversos de carne, fôssemos a classe;

ato classe, homem ato, homem classe.
E pela classe minha palavra seria repugnância,
coragem de permanecer e dizer,
fosse poesia ou pornografia.

Canto Grave e Profundo


É pesado o desabar das horas no fim do céu,
que se faz tempo e tempo para socorrer
o sangue derramado nos campos de pedra e sol
dos que foram feitos morrer

sem estender a mão para o fruto
semeado e que se fez em resposta
ao trabalho da mão nos campos de pedra e sol
no mundo em processo de classes superpostas.

E o trigo foi para outros lábios
que não os que bendisseram a chuva
e choraram o sol com a fome dos filhos

e o pão foi servido na mesa de homens
que não os que bendisseram a chuva:
e é novamente preciso semear os campos de pedra e sol.

Narciso


Enquanto nos atormentam as furiosas serpentes da

solidão
Eu sei de ti, como nenhum menino sabe de si mesmo
E te salvo da sombra de todos os teus espelhos
De onde emergem intactas as imagens claras da

compaixão
E cai no fundo das águas o céu do verão
Frutas vermelhas amadurecem o peco desejo
Há um cardume de ânsias mergulhadas no peito
Estás com ar transfigurado, a insone paixão
Nunca abandona o insondável aquário
E disfarças como ontem o inevitável beijo
Anunciando a Narciso seu adiado naufrágio

terça-feira, 22 de maio de 2012

Torquato Neto

A rua

Toda rua tem seu curso
Tem seu leito de água clara
Por onde passa a memória
Lembrando histórias de um tempo
Que não acaba

De uma rua, de uma rua
Eu lembro agora
Que o tempo, ninguém mais
Ninguém mais canta
Muito embora de cirandas
(Oi, de cirandas)
E de meninos correndo
Atrás de bandas

Atrás de bandas que passavam
Como o rio Parnaíba
O rio manso
Passava no fim da rua
E molhava seus lajedos
Onde a noite refletia
O brilho manso
O tempo claro da lua

Ê, São João, ê, Pacatuba
Ê, rua do Barrocão
Ê, Parnaíba passando
Separando a minha rua
Das outras, do Maranhão

De longe pensando nela
Meu coração de menino
Bate forte como um sino
Que anuncia procissão

Ê, minha rua, meu povo
Ê, gente que mal nasceu
Das Dores, que morreu cedo
Luzia, que se perdeu
Macapreto, Zé Velhinho
Esse menino crescido
Que tem o peito ferido
Anda vivo, não morreu

Ê, Pacatuba
Meu tempo de brincar já foi-se embora
Ê, Parnaíba
Passando pela rua até agora
Agora por aqui estou com vontade
E eu volto pra matar esta saudade

Ê, São João, ê, Pacatuba
Ê, rua do Barrocão

O Poeta é a Mãe das Armas

O Poeta é a mãe das armas
& das Artes em geral —
alô, poetas: poesia
no país do carnaval;
Alô, malucos: poesia
não tem nada a ver com os versos
dessa estação muito fria.

O Poeta é a mãe das Artes
& das armas em geral:
quem não inventa as maneiras
do corte no carnaval
(alô, malucos), é traidor
da poesia: não vale nada, lodal.

A poesia é o pai da ar-
timanha de sempre: quent
ura no forno quente
do lado de cá, no lar
das coisas malditíssimas;
alô poetas: poesia!
poesia poesia poesia poesia!
O poeta não se cuida ao ponto
de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo
já sabe: não está cortando nada
além da MINHA bandeira ////////// =
sem aura nem baúra, sem nada mais pra contar.
Isso: ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. a
r: em primeiríssimo, o lugar.


poetemos pois

Go Back

Você me chama
Eu quero ir pro cinema
você reclama
meu coração não contenta
você me ama
mas de repente a madrugada mudou
e certamente
aquele trem já passou
e se passou
passou daqui pra melhor,
foi!
Só quero saber
do que pode dar certo
não tenho tempo a perder
você me pede
quer ir pro cinema
agora é tarde
se nenhuma espécie
de pedido
eu escutar agora
agora é tarde
tempo perdido
mas se você não mora, não morou
é porque não tem ouvido
que agora é tarde
- eu tenho dito -
o nosso amor michou
(que pena) o nosso amor, amor
e eu não estou a fim de ver cinema
(que pena)

Pra Dizer Adeus

Adeus
Vou prá não voltar
E onde quer que eu vá
Sei que vou sózinho

Tão sozinho amor
Nem é bom pensar
Que eu não volto mais
Desse meu caminho

Ah! pena eu não saber
Como te contar
Que esse amor foi tanto
E no entanto eu queria dizer

Vem
Eu só sei dizer
Vem
Nem que seja só
Pra dizer adeus

domingo, 20 de maio de 2012

Prisca Agustoni

Companhia

A caligrafia desnuda o corpo
apesar de sua ausência

antes do regresso
os assaltos constantes
e mãos proscritas
ao desejo

esconderijo onde esperam,
os amantes

Abril

A partir de hoje
tenho três meses
para as revoluções.
Dormirei comigo
novamente,
o açafrão nas costelas.
Depois sairei ao dia
cumprindo a alegoria do sol:

a cidade será enfim
um espelho de púrpura.

Pont de la Machine

após a chuva
seus cabelos viraram fogo.
Não sei porque
vivi uma noite longamente
aberta sobre suas alucinações.

Les Mots

      já não consigo
contê-las
 então resvalam.
gota após gota,
precipitando no fundo,
de onde nos espreitam,
felinas,

até que recuperemos
a voz.

Antonio Miranda

Adeus

Que seja com um machado.
Prefiro uma lâmina aguda
um simples martelo
num golpe de misericórdia.

Com palavras, não.
Elas ferem muito mais
penetram mais ainda
mais fundo.


Nada de desculpas
de explicações.


De um só golpe
certeiro
definitivo.


Se não,
saia em silêncio.

Apague a luz.
...

Maturidade
 
Eu sou um privilegiado
e nem percebia:
vivo a minha fantasia.
Tenho tanto
em tão pouco
mas não me basto
no pleno usufruto
do qu'eu queria.

Buriti

Árvore da vida.
Solene,
solitária, solidária.

Nas entranhas da terra e
em cúpula celeste:
ramificações estranhas,
demarcando várzeas
celebrando oásis
matinais.

Óleo e copa,
alimento e proteção de vida.

Das entranhas da terra
ao firmamento,
uma simetria de volumes
invertidos: no espaço aberto
e no solo contido,
ampulheta de vida.

Buritizais descendo geografias
aquáticas
no roteiro dos pássaros
e tropeiros.

Escamas
córneas lustrosas
avermelhadas.

Não se sabe se é a palmeira
que passa ou o tropeiro
que fica.

Testemunhas silentes
mas não indiferentes
pois o buriti é dadivoso
umbrátil
altaneiro.

Enquanto houver buritizais
enquanto houver mananciais
enquanto houver chuvas
lodaçais
enquanto
e portanto
o milagre da existência,
entretanto
vida e pranto.
 
Confissão

Tenho inveja, confesso,
de quem pode verter a sua dor
em plangentes versos de amor,
de quem explode em doce envide.
Tenho inveja de quem clama,
ama e se proclama sempre
em nome de um deus,
de quem tem a fé
que eu nunca tive.
inveja de quem entra em desespero
e suicida por alguém
que lhe não correspondia;
enquanto eu, mesmo feliz
no relacionamento mais duradouro
vivo sempre o último momento,
todo dia.

sábado, 19 de maio de 2012

Ronaldo Costa Fernandes

Beira-mar

O menino olha extasiado a maré encolher-se.
O que era água agora é lamaçal cinza
e os homens bonecos de barro sem pernas
caranguejam atrás de sua imagem e semelhança
– e alguma lata de conserva
que se finge de baiacu de alumínio.
O menino vê o Rio Anil ser engolido pela maré.
Para onde foi tanta água?
O menino também é uma maré vazia perplexidade
vento soprando mangue maré vagueza.
O mangue esponja em seu bolo fecal.
Tarde, tarde, o menino olha a tarde,
o fenômeno é reversível,
maré retrátil,
ele sabe que, como a vida,
amanhã voltará a acontecer.

O rosto

Na sombra, os rostos têm todas as feições
porque nela cabe a imaginação
cuja cara é uma deusa sem rosto.

Por isso te vejo em todas as sombras —
sombras do quarto e da noite.
Por isso estás também
em minha mente
que vive em permanente sombra.

A arte do corpo

Numa dessas Bienais de São Paulo,
vi de longe, sozinho, passarinho,
o poeta Mário Quintana.

Durante anos a imagem – peixe azul – me perseguiu.
Por fim, entendi a recorrência:

Mário Quintana era móbile,
magra body-art,
andar performático,
existência conceitual,
em seus parangolés de ossos e calvícies,
em sua lígias & papes
de velho movido a arame,
seu corpo virtual,
ali, entre os cimentos desarmados do Ibirapuera.

O tempo

O tempo e sua matéria
a máquina dos meus humores
tão rica e mineral
enquanto lá fora
a sonata dos desatinos
orquestra o boi que se estende no varal.

O tempo e sua miséria,
deus negro que não encontra o sono.

O tempo e sua morfologia
feita de nada e de tudo
como alguém que anda
com os calcanhares para a frente.

O tempo e sua bílis negra,
atrabiliário e perverso,
monstro do Loch Ness,
ó profundeza feita de vazio.

O tempo e sua caixa de música
o lugar dos sons prisioneiros
que se escuta é o silêncio das horas
lambendo o ar rarefeito.

O tempo – animal que não envelhece,
nós é que passamos por ele
como alguém que acena de um ônibus
para a imobilidade saudosa
de um bar à beira da estrada.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Alexei Bueno

A Florbela Espanca

Amada, por que eu tive a tua voz
Depois que o Nada teve a tua boca?
A lua, em sua palidez de louca,
Brilha igual sobre mim, e sobre nós!...

Porém como estás longe, como o algoz
De um só golpe sem fim — a Morte — apouca
Os gritos dos que esperam, a ânsia rouca
Dos que atrás têm seu sonho, os grandes sós!

Aqui não brilha o mundo que engendraste
Como o manto de um deus, e astros sangrentos
Não nos rolam nas mãos da imensa haste.

E só estes olhos meus, que nunca viste,
Se incendeiam, vitrais na noite atentos,
Voltados para o chão aonde fugiste!

Helena

No cômodo onde Menelau vivera
Bateram. Nada. Helena estava morta.
A última aia a entrar fechou a porta,
Levavam linho, ungüento, âmbar e cera.

Noventa e sete anos. Suas pernas
Eram dois secos galhos recurvados.
Seus seios até o umbigo desdobrados
Cobriam-lhe três hérnias bem externas.

Na boca sem um dente os lábios frouxos
Murchavam, ralo pêlo lhe cobria
O sexo que de perto parecia
Um pergaminho antigo de tons roxos.

Maquiaram-lhe as pálpebras vincadas,
Compuseram seus ossos quebradiços,
Deram-lhe à boca uns rubores postiços,
Envolveram-na em faixas perfumadas.

Então chamas onívoras tragaram
A carne que cindiu tantas vontades.
Quando sua sombra idosa entrou no Hades
As sombras dos heróis todas choraram.


Pergunta

Será realmente a face do Universo
A face da Medusa,
Esta geral destruição confusa,
Este criar perverso,

Ou será a máscara, álgida e estrelada,
Onde os cometas passam,
Turva de treva, rútila de nada,
E onde olhos se espedaçam?


Noturno

Sobre os seus saltos, sob a lua cheia,
Os travestis desfilam como garças,
Farsa carnal em meio às outras farsas
Que o mundo absurdo no aéreo chão semeia.

São deusas-mães usando liga e meia,
De ancas imensas, madeixas esparsas,
De enormes seios, piscando aos comparsas,
Buscando otários para a escusa teia.

São Vênus neolíticas chamando
Sombras confusas, entre os cães sem casa
E os negros ébrios. Seu barroco bando

Volveu, pulsante, dos tetos das grutas,
E anda na névoa, como numa vasa,
Rotundas popas balouçando enxutas.


Armando Freitas Filho

I

Açucenas: não me lembro
de nenhum céu que me console.
só o que leio a sós
são os segundos sentidos
os açúcares agudos
na véspera do azinhavre
o silencioso rasgado azul
de uma bandeira.


II

Por barbear
com a cara de encontro ao dia
que espera e arranca
árvores vivas, folhas de guarda
de dentro da noite em claro.
Falso rosto
impossível prever
a variação seguinte
se de sol, se de stress
no espelho sem controle.
 
III


Falo pela alma
pelo que foge para fora
do concentrado foco do corpo:
rude - com raiva e relva
contra a pele, à contraluz
metade cavalo
pedaço de pedra sem asa
terra-a-terra, e irredutível
falo
com coração e técnica.


Antiquário

Mil folhas. Mesmo em algumas das mais
passadas, um pouco do sabor, um risco
de doçura e amargo, é remanescente.
Anamnésia construída pelo fato
e pela imaginação: vai do anátema
ao enaltecimento, expressos em alta voz
até ao murmúrio cifrado no coração.
O acervo de uma vida se dispersará
depois de ela parar: alguma coisa
aqui, nesta casa, para lembrar quem se foi
fica, sem roubo nem degradação, sobrando.
O resto, espalhado na desordem dos arquivos
dos sebos e brechós, nós defeitos
na mudança para lugar nenhum
perdido no limbo, reciclável em outro corpo
e destino, longe do clamor da hora
cada vez mais afastado do limiar original
da montagem do dia, à margem do relógio
rasgado por mãos alheias, posto fora
o sonho, que se açucara, perde o gosto, e fere.


quarta-feira, 16 de maio de 2012

Fernando Py

O Verbo
 
o verbo
preexiste
às areias do tempo

o verbo
perfaz o mundo
em seus números

o verbo
no espaço da frase
conjuga
seu traço múltiplo

o verbo
molda-se em carne
no disfarce
da palavra

o verbo
se apessoa
aos enxertos
da voz 


o verbo
mal se conquista
- a doma é acerba

o verbo
se averba 



Encontro

A antiga namorada
ressurgindo na rua
você enxovalhado
cabelo e barba por fazer
vida de sacrifício
meio se esconde
e ela passa
ainda jovem
talvez mais bonita
mais mulher
bem tratada
vestido caro
você recorda
o primeiro beijo
aquela paixão eterna
o baile de formatura
a profissão abandonada
vai levando nos olhos
o tipo mignon
que outros braços
e beijos
farão vibrar
recorda
poemas que lhe fez
o livro de estréia
tão pobre e tão longe
tão dela impregnado

sente-se velho
acabado
saudade da juventude
mas foi a sua opção
os filhos de outra mulher
a literatura
vida tão avessa
assume
e na volta da esquina
desaparece
a antiga namorada.


Confissão

Não direi do desgaste a que me exponho
no trabalho e suor de me conter
sob muros agressivos e silêncio
cuja acidez dentro de mim escalda
e me castiga as vísceras e a pele.
Darei parcos indícios dessa algema
que vai mordendo, abutre, o sangue e os nervos
e me abate e renasce ao infinito.
Percebo presos ao asfalto os pés
e, feras, sobre mim convergem brasas
rugindo. E pedregulhos, galhos de árvore,
limitam-me a visão e me povoam
a memória de cifras e destroços.


Fui eu


Fui eu esse menino que me espia
- melancólico olhar, sereno rosto,
postura fixa e o todo bem composto -
no retrato que o tempo desafia.

Fui eu na minha infância fugidia
de prazeres ingênuos, e o desgosto
de sentir tão efêmera a alegria
bem depressa trocada em seu oposto.

Fui eu, sim; mas o tempo que perpassa
e tudo altera nem sequer deixou
um grão de infância feito esmola escassa.

Fui eu: e na figura só ficou
o olhar desenganado, na fumaça
em que a criança inteira se mudou.


sábado, 12 de maio de 2012

Carlos Drumond de Andrade - Fazendeiro do Ar

Fazendeiro do Ar - Carlos Drummond de Andrade em documentário de Fernando Sabino e David Neves de 1972  http://youtu.be/UP66vBqmiNE

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
  este coração.  
                                
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão

Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

José Carlos Peliano - Poema do mês


a nuvem e eu 

falta pouco para nada
se nada já é muito
onde o tempo sem tamanho
se estica ainda mais
no espaço invisível que não olha para trás

não falta mais nada
muito ainda a ser nada
nada ainda a ser muito
a nuvem forma o rosto
que me olha e diz muito

entre nada e muito
um rosto enevoado aparenta ser um rosto
nada mais nada menos
pesa o espaço e o tempo acompanha
a nuvem se desfaz e leva o rosto

sei agora mais nada
muito a destilar do nada
uma questão de toque
espero longe dos pensamentos
outra nuvem sair de dentro de mim

Casimiro de Brito

Meus pensamentos são nómadas

Meus pensamentos são nómadas
e vagarosos

como a água que vem da montanha
e não sabe nada

do coração dos homens.
O meu, por exemplo,
tem a leveza do vento

e corre para casa como se fosse
um cão que precede
os passos do dono.

46

A guerra dos homens não inibiu
As cores do arco-íris: O mundo está pois
No seu caminho, no campo raso onde respiram
Os insetos silenciosos da morte. Os homens
Deslizam insaciáveis com o desejo
Virado para o céu. O corpo está pois
No bom caminho: A boca na terra
De quem vive apenas
Este momento.

*

Adormecer
assim: inclinado
sobre um rio
em repouso.
A mão esquerda
caída em palma
no crânio; a boca
no ombro no aroma
da pele; o joelho
e a mão direita
na coxa no canteiro ainda
molhado. Acordar assim: ouvir
o breve adágio do corpo amado
a respiração pouco a pouco mais tumultuosa
sob os lençóis subitamente visitados
pelo sol da manhã.

**


Se eu pudesse deixar de correr
Caminhava se eu pudesse deixar de caminhar
Sentava-me à sombra da nogueira azul do céu
Se eu pudesse deitar-me deitava-me
Numa cova com a forma do meu corpo em
Repouso se eu pudesse deixar de cantar
Fechava os olhos e olhava o alto vazio
Onde não acontece nada a não ser
A conciliação provisória do caos
E da luz que não se cansa de nascer.

Maria Esther Maciel

Aula de Desenho


Estou lá onde me invento e me faço:
De giz é meu traço. De aço, o papel.
Esboço uma face a régua e compasso:
É falsa. Desfaço o que fiz.
Retraço o retrato. Evoco o abstrato
Faço da sombra minha raiz.
Farta de mim, afasto-me
e constato: na arte ou na vida,
em carne, osso, lápis ou giz
onde estou não é sempre
e o que sou é por um triz.


Paisagem com frutas

Duas peras sobre a mesa
esperam a tua fome.
O dia é verde
e o vento tem cores provisórias.


Sobre o muro
um pássaro mudo
de olhar escuro
perscruta a tua sombra


Ele sabe
que ninguém sabe
em que azul
ocultas
teu absurdo.


Amor

Na véspera de ti
eu era pouca
e sem
sintaxe
eu era um quase
uma parte
sem outra
um hiato
de mim.


No agora de ti
aconteço
tecida em ponto
cheio
um texto
com entrelinhas
e recheio:


um preciso corpo
um bastante sim.


Blackheath

A poesia me chama entre as árvores
de folhas incompletas.
O vento é frio, apesar de terno.
Corvos mancham o azul sem peso
desta tarde que não começa.

O trem também me chama.
E não vou.

Carlos Nejar

Entreato

Testemunhei o desconcerto
meu e de todos;
não escondi o logro.
Se nunca me rendi,
somente desarmei
o que perdi.
Nada retirei
dos arsenais
a não ser
(por meu mal)
este revólver
sem balas,
calibre de horas
padecidas
e um coldre
de ambições.
Sim, muito trabalhei
por natureza e lei.
Medir não aprendi:
a morte, a vida.
Por isso jazo aqui.

Clara Onda

Este amor em meadas e triciclos
que nunca se divide, confluindo
e torna noite este sapato findo
e o firmamento, silencioso ciclo.
 
Este amor em meadas, infinito.
Em meadas de orvalho, desavindo,
em meadas e quedas, rugas, trincos
e rusgas, trinos, pios e sóis contritos.
 
Este amor me retece e configura.
Tem pressa de crescer, fogo calado.
Apenas queima, quando não se apura.

Parece interminável, quando tomba.
E só se apura, quando despertado.
Dissolvido me solve em clara onda.

Pedra-Vento

O vento lavou as pedras,
mas ficaram as palavras.
O vento lavou as pedras
com sabor de madrugada.
 
O vento lavou as noites,
mas ficaram as estrelas.
 
O vento lavou a noite
com água límpida e mansa.
Mas não lavou a salsugem.
 
O vento lavou as águas,
mas não lavou a inocência
que amadurece nas águas.

O vento lavou o vento.

De longo curso

Minha alma descansa
na tua alma,
onde a luz jamais
desativada:
é um navio de longo
curso pela água.

Redonda a luz e nós
atracamos na foz
com o fundo calmo.
Em mim te almas
e te amando, eu almo.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Gabriela Mistral


Volverlo a ver

¿Y nunca, nunca más, ni en noches llenas
de temblor de astros, ni en las alboradas
vírgenes, ni en las tardes inmoladas?

¿Al margen de ningún sendero pálido,
que ciñe el campo, al margen de ninguna
fontana trémula, blanca de luna?

¿Bajo las trenzaduras de la selva,
donde llamándolo me ha anochecido,
ni en la gruta que vuelve mi alarido?

¡Oh, no! ¡Volverlo a ver, no importa dónde,
en remansos de cielo o en vórtice hervidor,
bajo unas lunas plácidas o en un cárdeno horror!

¡Y ser con él todas las primaveras
y los inviernos, en un angustiado
nudo, en torno a su cuello ensangrentado!


La flor del aire

Yo la encontré por mi destino,
de pie a mitad de la pradera,
gobernadora del que pase,
del que le hable y que la vea.

Y ella me dijo: "Sube al monte.
Yo nunca dejo la pradera,
y me cortas las flores blancas
como nieves, duras y tiernas."

Me subí a la ácida montaña,
busqué las flores donde albean,
entre las rocas existiendo
medio dormidas y despiertas.

Cuando bajé, con carga mía,
la hallé a mitad de la pradera,
y fui cubriéndola frenética,
con un torrente de azucenas.

Y sin mirarse la blancura,
ella me dijo: "Tú acarrea
ahora sólo flores rojas.
Yo no puedo pasar la pradera."

Piececitos

Piececitos de niño,
azulosos de frío,
¡cómo os ven y no os cubren,

¡Dios mío!

¡Piececitos heridos
por los guijarros todos,
ultrajados de nieves
y lodos!

El hombre ciego ignora
que por donde pasáis,
una flor de luz viva
dejáis;

que allí donde ponéis
la plantita sangrante,
el nardo nace más
fragante.

Sed, puesto que marcháis
por los caminos rectos,
heroicos como sois
perfectos.

Piececitos de niño,
dos joyitas sufrientes,
¡cómo pasan sin veros
las gentes!


 Ausencia

Se va de ti mi cuerpo gota a gota.
Se va mi cara en un óleo sordo;
se van mis manos en azogue suelto;
se van mis pies en dos tiempos de polvo.

¡Se te va todo, se nos va todo!
Se va mi voz, que te hacía campana
cerrada a cuanto no somos nosotros.

Se van mis gestos, que se devanaban,
en lanzaderas, delante tus ojos.

Y se te va la mirada que entrega,
cuando te mira, el enebro y el olmo.

Me voy de ti con tus mismos alientos:
como humedad de tu cuerpo evaporo.

Me voy de ti con vigilia y con sueño,
y en tu recuerdo más fiel ya me borro.

Y en tu memoria me vuelvo como esos
que no nacieron ni en llanos ni en sotos.

Sangre sería y me fuese en las palmas
de tu labor y en tu boca de mosto.

Tu entraña fuese y sería quemada
en marchas tuyas que nunca más oigo,
¡y en tu pasión que retumba en la noche,
como demencia de mares solos!

¡Se nos va todo, se nos va todo!



sexta-feira, 4 de maio de 2012

Roberto Piva

Poema XIV

"vou moer teu cérebro. vou retalhar tuas
coxas imberbes & brancas.
vou dilapidar a riqueza de tua
adolescência. vou queimar teus
olhos com ferro em brasa.
vou incinerar teu coração de carne &
de tuas cinzas vou fabricar a
substância enlouquecida das
artas de amor." 

A vida me carrega no ar como um gigantesco abutre (final do poema)

"minha dor é um anjo ferido
de morte
você é um pequeno deus verde
& rigoroso
horários de morte cidades cemitérios
a morte é a ordem do dia
a noite vem raptar o que
sobra de um soluço".

Poema XVI


abandonar tudo. conhecer praias. amores novos.
poesia em cascatas floridas com aranhas
azuladas nas samambaias.
todo trabalhador é escravo. toda autoridade
é cômica. fazer da anarquia um
método & modo de visa. estradas.
bocas perfumadas. cervejas tomadas
nos acampamentos. Sonhar Alto.

Porrada

Eu estou farto de muita coisa
não me transformarei em subúrbio
não serei uma válvula sonora
não serei paz
eu quero a destruição de tudo que é frágil


A Piedade

Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento
abatido na extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da
luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam
cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio
bóia? por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as
estátuas de fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos
pederastas ou barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam
que tenho todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos
pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas
asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
dos meus sonhos