Peliano costuma brincar que a poes-ia e foram os poetas que a trouxeram de volta! Uma de suas invenções mais ricas é conseguir por em palavras lirismos maravilhosos, aqueles que percebemos de repente e temos a impressão que não vamos conseguir exprimi-los. Exemplos: de Manoel de Barros -"Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura. De tarde o deserto já estava em nós"; de Ernesto Sabato - "Sólo quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para ... recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido"; de Thiago de Mello - "Faz escuro mas eu canto"; de Helen Keller - "Nunca se deve engatinhar quando o impulso é voar"; de Millôr Fernandes - "Sim, do mundo nada se leva. Mas é formidável ter uma porção de coisas a que dizer adeus". É como teria exclamado Michelangelo que não fora ele quem esculpiu Davi, pois este já estava pronto dentro da pedra, Michelangelo apenas tirara-o de lá. Então, para Peliano, o lirismo é quando nos abraça o mundo fora de nós, cochicha seu mistério em nossos ouvidos e o pegamos com as mãos da poesia em seus muitos dedos de expressão.

domingo, 15 de julho de 2012

Cláudia Roquette-Pinto

vão


palavra-persiana
poema-lucidez
imanta o ar fora do cômodo
das frases um outono
rente à janela
ouro tonto sobre a tarde derrubada
entrementes, entre dentes
(e quatro paredes)
tua boca ainda evoca
equívoca e pobre.
na penugem além da vidraça
os deuses-de-tudo-o-que-importa
cerram as pálpebras de cobre


fósforo

ela segue dormindo. na borda do lençol o que a acalenta não são flores - senão aquelas mínimas rosas, pontas buliçosas de falanges a afiar seus instrumentos. sobre as cinzas do peito vão as pegadas, fósforo expondo ao ar noturno seu poder de ignição. o objetivo: o ermo pavilhão (esquerdo) do ouvido. onde então dispersariam, indo pesar alhures. nas pálpebras lilases, nas pétalas pisadas dos olhos, onde outro grupo de homúnculos labora. com minúcia, com agulhas de prata eles picam a superfície da pele pálida e baça e tão logo abertas às intempéries da luz. a cada golpe da agulha ela sabe , a massa corrente dos sonhos, a água caiada quase a ponto de talho se enruga e ralenta, e onde ali havia superfície fluida, ininterrupta, o que se coagula?


semi-cerrada na madrugada avulsa ela espera que alguma mão (a sua?) trêmula recolha toda a alva matéria e a explique.


poema submerso

olho: peixe-olho que
desvia a mão engua
a pele lisa a
té o umbigo e logo
a flora de onde aflora
(na virilha) p
barbirruivo a
ceso bruto an
fíbio: glabro


dedo tão tentáculos
e crispam esmer
ilham dorso abaixo a
cima abaixo brilha
o esforço bravo
peixe tentando escapar mas


ei-lo ao pé da frincha que
borbulha (esbugalha?)
roxa incha e mergulha em
brasa estala
e agora murcha
peixe-agulha e
vaza
vaza


V


Vencida pelo perfume das rosas,
partida
pela investida dos violinos em rasante
desequilibrando a sala,
partida
como um graveto estala
em algum recanto do corpo
e deflagra o que não se decifra.
Descida no curso de um susto
entremeado de vertigens
(a meia-pálpebra, o rosto dissimula)
nua, sem bússola ela emborca
mergulha
afunda
na delícia da derrota.


sexta-feira, 13 de julho de 2012

Lélia Coelho Frota

Uma dor

O vento soprava árvores da esquerda
Ao fundo, o menino tocava o violão preso no ombro,
como um pequeno navio adernado.
Uma dor
no mundo
rachava tudo fino e longe,
cinema mudo.


Princípio


A morta abriu o dia radioso
com a cortina da sua despedida.
Partiu no meio os cabelos vagarosos
escorrendo ainda de lembranças,
vestiu o vestido precioso
e saiu à procura, sôfrega,
de outras tantas, verdadeiras vidas.

Litoral (poemas portugueses)

Estávamos um diante do outro
como um só espelho de ouro.
Entre nós corria o rio rubro
e era tempo de despedida.
Portugal, Espanha ou as cícladas,
é tempo, mas de frutas cítricas
para ter nas mãos a colhida,
ácida, consentida, súplice vida.

Recém-casado

É pelos corpos que nos perdemos
de nós mesmos, para nos ganharmos.
É pelos beijos que nos despedimos
para nos encontrarmos pelos olhos.
É pela pele que escaldamos
o que em nós havia de secreto:
e é o nosso corpo entregue um corpo
estranho
pois pertence só a quem amamos
por quem morosamente devassamos
o alheamento da carne -
o barqueiro, o pastor que a atravessa
num profundo arremesso vagaroso
levantando ondas, ondas, ondas e
ervas
a subir e descer vagas e montes
levando-me com ele à raia clara
onde água a quebrar-se eu me
constele
na sua barca, conduzida à praia.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Gilberto Mendonça Teles

História


Toda história tem seu texto
tem seu pretexto e pronúncia.
Tem seu remorso, seu sexto
sentido de arte e denúncia.

Tem um sujeito que a escolhe
que se encolhe e se confunde:
um lugar que sempre a tolhe
qui tollis peccata mundi.

Tem sua forma em processo,
tem seu recesso e cansaço,
e tem seu topo de excesso
no ponto extremo do escasso.

Tem sua língua felpuda,
a voz aguda e afetada.
R tem a essência que muda
e permanece, calada.

Toda história tem seu preço,
tem seu começo e seu dito.
É só virar pelo avesso,
ler o que está subscrito.

Chá das cinco

chá de poejo para o teu desejo
chá de alfavaca já que a carne é fraca
chá de poaia e rabo de saia
chá de erva-cidreira se ela for solteira
chá de beldroega se ela foge e nega
chá de panela para as coisas dela
chá de alecrim se ela for ruim
chá de losna se ela late ou rosna
chá de abacate se ela rosna e late
chá de sabugueiro para ser ligeiro
chá de funcho quando houver carunhco
chá de trepadeira para a noite inteira
chá de boldo se ela pedir soldo
chá de confrei se ela for de lei
chá de macela se não for donzela
chá de alho para um ato falho
chá de bico quando houver fuxico
chá de sumiço quando houver enguiço
chá de estrada se ela for casada
chá de marmelo quando houver duelo
chá de douradinha se ela for gordinha
chá de fedegoso pra mijar gostoso
chá de cadeira para a vez primeira
chá de jalapa quando for no tapa
chá de catuaba quando não se acaba
chá de jurema se exigir poema
chá de hortelã e até manhã
chá de erva-doce e acabou-se

(pelo sim pelo não
chá de barbatimão)

45

Sou da geração
de quarenta e cinco
ou tenho na mão
a porta sem trinco?

(Nem sei quantas são
as telhas de zinco
que cobrem meu chão
de quarenta e cinco.)

Semeei meu grão?
fui ao fim do afinco?
pesquei a paixão
de quarenta e cinco?

Tudo é sim e não
em quarenta e cinco.
E a melhor lição
forma sempre um vinco

de interrogação
no tempo, onde brinco
procurando um vão

Etnologia

Ainda

há índios.

sábado, 7 de julho de 2012

Dora Ferreira da Silva

Agora


Agora que no vagar dos pensamentos
chamo-te - pai - da estação da infância
como se pudesses voltar no rápido só para me embalar,
fecho os olhos dentro de tuas pálpebras.
És minha invenção de amor. Olhos melancólicos
os teus. Eu contigo em degredo.


Difícil tocar a face desse segredo cada vez mais longe
e partir e também ficar, embora encontrada a chave
[da porta mais secreta.
Se eu pudesse dizer: seja a paisagem de seda azul
e o último sol fortíssimo do ocaso
- eu liberta enfim de tuas pupilas.
Um rio passaria desenhado pela mão mais fina. Passa uma
[pluma apenas uma
no rio acordado.


Mulher e Pássaro


Linha invisível
liga-me àquela andorinha:
tato percorrendo
um trajeto
de comunhão. O pássaro
debate-se em meu peito.
Ou coração? A andorinha
se esvai na tarde. Leva consigo
o que não sei de mim.

Murmúrios


Pousa num ramo um sopro de agonia
dos que morrem (sem saber)
em nosso coração.
Suspira a noite no vento vadio.
Amados mortos: tentais dizer
o quanto amais ainda?

Chamar Pássaros


Chamar pássaros com o alpiste
de amá-los. Eles pousam nos parapeitos. Nem
sombra de medo nessa aproximação.
Quase me sinto gêmea do que são parados
à beira da janela ou saltando no telhado
recém-chegados.
A cordialidade dos pássaros é
sutil:
afloram o coração de quem os ama.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Neide Archanjo


Ontem

Ontem
noite alta
na cama desfeita
tua imagem me surpreendia

cravando um punhal doce
no meio do meu corpo
onde o desejo renascia.

Ninguém nos via
nem o sono
que diante da tua presença
bruscamente se evadia.

Ontem
noite alta
na cama desfeita
nasciam flores
nasciam flores.

Estou aqui

Estou aqui
numa das esquinas do planeta
entre o Mediterraneu e o Oceanus Atlanticus
nestas costas
onde cerraram-se para sempre
rios abras e baías
e mesmo algumas ilhas
estuários interiores.
Eu, selvagem, mulher silvestre,
florida em telas e museus
vergonhas não-cobertas
—ah, Iracemas Paraguaçus Moemas! —
entre os deleites da corte instalada.
Eu que não tive por trisavô nenhum celta
bem rico e bem atrevido no mar
a quem chamasse armador.
Eu que deixei para trás
sertões não-navegados
em terra e mar fundidos
nossas Aljubarrotas e Alcácer-Quibires
chão de estrelas e derrotas
compostas identidades
onde o imenso amadurece.

Da poesia

Esculpo a página a lápis
e um cheiro de bosque
então me aparece.
Que a poesia é feita de romãs
daquilo que é eterno
e de tudo que apodrece.


Neste mezzo del camin

Neste mezzo del camin
carrego comigo obras e cânticos
alguns alheios outros próprios
coisas que escolhi.
Entre vogais e vocábulos
componho a biografia
construção sonora de rostos
reflexos sentimentos
tão grande tão grandes
uns rindo como gralhas
outros mansos
todos não perdidos
pressentida romã entreaberta
assim esta memória existe.
Vou como o discípulo
de um velho pintor chinês
que curvado sob o peso de pincéis
potes de laca
rolos de seda e de papel arroz
sonhava carregar montanhas rios
falcões reais
e se assim sonhava
certamente assim o fazia.

Geir Campos

Haicai

Vento da manhã
varre as folhas pelo chão
do dia que nasce.

Olhos de afogado:
são de ver coisas terríveis
no fundo do mar.

Fogueira

Os gnomos do bosque desabotoam
as toscas pelerines de cortiça
forradas com cetim púrpura e ouro:
o mais sanguíneo deles inaugura
um inferno menor, e todos dançam,
enquanto as labaredas tremem como
mãos de noivas sem tálamo, acenando
para o vento cantor que as chora ausentes
— e também chora, nas árvores altas,
a mágoa obscura de não serem flautas.

Tarefa

Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis...
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar —
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.

Alba

Não faz mal que amanheça devagar,
as flores não têm pressa nem os frutos:
sabem que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.
Portanto não faz mal que devagar
o dia vença a noite em seus redutos
de leste - o que nos cabe é ter enxutos
os olhos e a intenção de madrugar.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Gabriel Garcia Marques

Carta de Despedida http://youtu.be/1HK3tkw0g5k

Abgar Renault

Noite


á duas pombas brancas no telhado.
Junto delas pousa o silêncio do dia já parado,
e entre asas caladas o primeiro gesto da noite vai crescendo.
É tarde nos telhados e nas árvores,
é tarde (triste e mais tarde) nessa rua
que se reabriu no fundo de um olhar,
onde se movem ressurrectos mármores
e começam a discorrer ventos e velas
por sobre a limpidez das mesmas águas velhas,
e pássaros azuis bicam frutos de astro soltos no ar.

Sobem (de onde?) vultos escuros de coisas e de entes,
alongam a última distância, somem a luz que se destece
e a linha dos caminhos, apagam o verde prado.
Não há duas pombas brancas no telhado:
sobre elas, seu vôo e seu arrulho ausentes
a lápide sem cor das horas desce.


Humildade


Minha humildade de água me trouxera
ao mais íntimo pó do pós de ti
e rira à desatada primavera
os ouros e cristais que ela sorri.

Trajada de urze, barro, liquen e hera,
ficara em desbotado e eterno aqui,
marcando, à tinta de ar, pelo ar a espera
de se entreabrirem tempestades e

silêncios para os lumes do teu passo.
Modelara-me em terra ou limo crasso
para ser teu desdém, objeto ou chão.

Vivera no final de selva e furna,
tornara o coração ilha noturna,
século, inverno a dormir o teu clarão.


Felicidade


Felicidade - o título tão comprido deste poema tão pequeno!
Felicidade - substantivo comum, feminino, singular, polissilábico.
Tão polissilábico. Tão singular. Tão feminino. E tão pouco comum.
Substantivo complicado, metafísico,
que cabe todo
na beleza clara de alguém que eu sei
e no sorriso sem dentes de meu filho.


Fim


O que eu perdi não foi um sonho bom,
não foi o fruto a embebedar meus lábios,
não foi uma cançõ de raro som,
nem a graça de alguns momentos sábios.

O que eu perdi, como quem perde uma outra infância,
foi o sentido do enternecimento,
foi a felicidade da ignorância, foi, em verdade,
na minha carne e no meu pensamento,
a última rubra flor do fim da mocidade.

E dói - não esse gesto ausente, a que se apagam
as flores mais solares, mas uma hora,
- flor de momento numa breve aurora -
hora longínqua, esquiva e para sempre morta,
em cuja escura, inacessível porta
noturnos olhos cegamente vagam.