Peliano costuma brincar que a poes-ia e foram os poetas que a trouxeram de volta! Uma de suas invenções mais ricas é conseguir por em palavras lirismos maravilhosos, aqueles que percebemos de repente e temos a impressão que não vamos conseguir exprimi-los. Exemplos: de Manoel de Barros -"Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura. De tarde o deserto já estava em nós"; de Ernesto Sabato - "Sólo quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para ... recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido"; de Thiago de Mello - "Faz escuro mas eu canto"; de Helen Keller - "Nunca se deve engatinhar quando o impulso é voar"; de Millôr Fernandes - "Sim, do mundo nada se leva. Mas é formidável ter uma porção de coisas a que dizer adeus". É como teria exclamado Michelangelo que não fora ele quem esculpiu Davi, pois este já estava pronto dentro da pedra, Michelangelo apenas tirara-o de lá. Então, para Peliano, o lirismo é quando nos abraça o mundo fora de nós, cochicha seu mistério em nossos ouvidos e o pegamos com as mãos da poesia em seus muitos dedos de expressão.

domingo, 14 de abril de 2013

Angélica Freitas



reinvenção do front

sabe bala zunindo
e soldado lendo
carta de amor
na trincheira
zzzzzzpiiiiiiiiiiiiiiiuuuu?

sou eu,

love-lorn soft-porn

tenho sempre
para a Musa
um poema na traqueia
uma prosa
sob a blusa

musiké

tenho pavor de festinhas
aparo as arestas da farsa
visto minha roupa nova

mas hoje não saio de casa

*
emoção sem opção
viajar no avião
da manteiga aviação

minas gerais

a pia pinga
até a medula a pia pinga

galo canta a pia pinga
noite e dia pinga pinga

você cresceu você casou
houve um golpe militar

a pia pinga e o menino
da esquina virou padre

a pia pinga

a pia pinga toda
a caixa d'água

terça-feira, 2 de abril de 2013

Eudoro Augusto

 

Despertar

O telefone é um susto.
Do outro lado da linha
Alguém articula um bom-dia
rouco de pedra.
Engano
Eu não moro mais aqui

Disciplina

Justamente porque a história da minha vida
mais parece um quarto desarrumado
não quero morrer no meio desta desordem.
E assim antes de se matar
Lídia Helena sacode o tapete
estica os lençóis e o edredon
guarda no armário as roupas íntimas
espalhadas sobre o sofá.
O gato assiste a tudo lambendo as patas
em movimentos lentos e regulares.

Ana C

Outra vez nos braços do amor perdido.
Sempre o declive. Sempre a vertigem.
Ás vezes o abismo.
Posso inflar
as velas de outra imagem
e assim navegar teus canais azulados,
minha lúcida amiga.
No céu-da-boca desta manhã
fica apenas um risco:
relâmpago longo como o olhar.
Luz. Outra luz. Louca luz.
O mesmo anjo que beija tua orelha fina
invade o cinema como um vento fictício

Abril

Não tenho mais olhos
pra enfrentar a claridade de abril.
Não tenho mais ouvidos
pra escutar você me dizer
que o amor não tem direito a sinceras desculpas
ou que o ódio não precisa de texto.
Não tenho mais saco
pra passar a vida pensando o inexplicável
ou tentando afastar um sentimento~
lento demais para ser verdadeiro.
e rabisca cicatrizes bem legíveis
no coração deserto do meio-dia.

Cecília Bossi




Vento verde

Enxerguei o vento
Estranho corpo bramindo
Mãos verdes dedos velozes.
(estranhos às minhas dezenas digitais).

Enxerguei-o violento pinheiral
Sacudindo as ondas revoltas do mar
Do mar que não me quis amar.

E enxerguei a minha própria sombra
ventada pelo ar.
 
À procura de poesia
 

Se vieres ao meu encontro
Procura minha presença
como um pássaro o seu ninho
somos o que a hora é pro relógio
pontuais como o tempo
e o nosso estilo aponta a faca para o arco.
-
Se me encontrares a minha essência esvaída
e a porta fechada
não desistas
há um animal pulsando nas veias abertas do meu pulso
o mar revolto e aberto
um navio atracado no cais procurando o porto
-
e a minha alma ancorada
procurando a tua libertação.
 
Flores
 
As flores que foram brotos, mudas semente
saíram da moda
as flores que eu queria
mudaram de praça
ninguém as olha ninguém as quer.

---

Saudades dos bons tempos que eram maus
de esperas tão inúteis colossais
e era sempre a desordem no meu caos
sem mais ver tuas roupas nos varais

Saudades sem retornos nos degraus
tão distantes das horas temporais
me atritando nas pedras, nos calhaus
me quebrando nas rochas de corais

Por ter saudades vivo em solidão
sem oásis, nas dunas do deserto
Não vejo minha própria escuridão,
mais cega do que a noite em vão te sigo
e não te vejo, nem de longe ou perto
eternamente imóvel em teu jazigo

Alex Polari de Alverga


Idílica estudantil

Nossa geração teve pouco tempo
começou pelo fim
mas foi bela a nossa procura
ah! moça, como foi bela a nossa procura
mesmo com tanta ilusão perdida
quebrada,
mesmo com tanto caco de sonho
onde até hoje
agente se corta.

Dia da Partida

Aí eu virei para mamãe
naquele fatídico outubro de 1969
e com dezenove anos na cara
uma mala e um 38 no sovaco,
disse: Velha,
a barra pesou, saiba que te gosto
mas que estás por fora
da situação. Não estou mais nessa
de passeata, grupo de estudo e panfletinho
tou assaltando banco, sacumé?
Esses trecos da pesada
que sai nos jornais todos os dias.
Caiu um cara e a polícia pode bater aí
qualquer hora, até qualquer dia,
dê um beijo no velho
diz pra ele que pode ficar tranqüilo
eu me cuido
e cuide bem da Rosa.
Depois houve os desmaios
as lamentações de praxe
a fiz cheirar amoníaco
com o olho grudado no relógio
dei a última mijada
e saí pelo calçadão do Leme afora
com uma zoeira desgraçada na cabeça
e a alma cheia de predisposições heróicas.
Tava entardecendo.

Indagações

Quando me interessei pelo mundo
e procurei o sentido da vida
a ética dependia da pontaria
a certeza era fácil
estava mais nas entranhas
e no coração
do que nos livros.
Hoje a coerência dos sistemas
me parece ridícula
e se nos livramos
de uma certa pressa
entendendo melhor
a vida e a teoria,
isso não significa que o problema da opção mudou.

Zoológico Humano

o que somos
é algo distante
do que fomos
ou pensamos ser.
Veja o mundo:
ele se move
sem nossa interferência
veja a vida:
ela prossegue
sem nossa licença
veja sua amiga:
ela se comove
por outros corpos
que não o seu.
Somos simplesmente
o que é mais fácil ser:
lembrança
sentimento fóssil
referência ética
apenas um belo ornamento
para a consciência dos outros.
A quem interessar possa:
Estamos abertos à visitação pública
sábados e domingos
das 8 às 17 horas.
Favor não jogar amendoim.

sábado, 16 de março de 2013

Elisabeth Veiga


Elegia 1

Já repeti o antigo encantamento
e só o cimento respondeu,
rastro de cinzas de maçã vencida,
desvestígio de gosto,
estanque julho que moeu vindimas
e deixou no espaço seu vinagre branco.
Onde havia um deus
os dias emboloram nuvens
de estrita agonia antepassada
que se olha no espelho
antes do adeus.
Inexiste, não soa, o que havia
fixou-se atrás da mente:
fim estalado de fotografia.
É agosto seco. É hoje e nunca houve.

Ao amor búfalo

Que heras venenosas te recubram
o avesso dos cabelos onde a ideia
de amor brotou torta
da cratera
desde o início.
E o tempo em temporais de areia
seja-te leve
ó meu suplício.
Nada foi verdadeiro na vereda
de finos artifícios
que teceram
com palha a fogueira das malícias,
benesses pesadelas:
teu passo elefantino e orgulhoso
com seus troféus de espanto e garrotes
novos à garota agradecida.
Seja-te leve esse esconjuro
de sal e ardósia,
esta laje com jeito
e faina de esfiapar-te
da lembrança,
cataventos
de cartas de amor despedaçadas.

Mil vezes

1

Só quem foi cicatrizado
muitas vezes
guarda
o vidrinho de Merthiolate.
Só quem foi cicatrizado
num exorcismo
mil vezes
tem uma fronha de lenços
onde a cabeça mal sonha.

2

Só quem foi acordado
no meio da noite
mil vezes
pelo corte pontiagudo
acorda por acordar,
acorda escancarado
com as portas batendo saltos,
guarda
um remedinho de trincos.

Só quem acorda mil vezes
não sabe mais quando dorme.

Alergia 2

Já repeti o velho encantamento
e o antigo deus Xipanto não azarou
na minha gleba de piche solferina.
Peguei o convescote, as sandálias murchas
e mudei de travesseiro lírico,
para afinar meu sambão em outros infernos.

Giuseppe Ungaretti



Manhã

Ilumino-me
de imenso

Campo

A terra
se cobriu
de tenra
leveza

Como uma esposa
nova
oferece
atônita
ao filho
o pudor
sorridente
de mãe

San Martino del Carso

Destas casas
nada sobrou
senão alguns
pedaços de muro

De quantos
me foram próximos
nada sobrou
nem tanto

No coração porém
nenhuma cruz me falta

É o meu coração
a região mais destroçada
nenhuma cruz me falta

É o meu coração
a região mais destroçada

Hino à morte

Amor, meu emblema de jovem,
Que volta a dourar a terra,
Difuso no dia rupestre,
É a última vez que contemplo
(Ao pé deste barranco, de impetuosas
águas, suntuoso, funesto
De antros) o rastro de luz
Que, como a lastimosa rolinha
Inquieta, meandra no gramado.

Amor, salvação fulgurosa,
Pesam-me os anos do porvir.

Largado o bastão fiel,
Resvalarei para a água sombria
Sem um queixume.

Morte, árido rio ...

Imêmore irmã, morte,
Igual ao sonho me farás
Beijando-me.

Terei teu mesmo passo,
Irei sem deixar traço.

Tu me darás o coração indiferente
De um deus, serei inocente,
Sem pensamentos, nem cuidados.

Com a mente murada,
Com os olhos caídos em esquecimento,
Far-me-ei guia da felicidade.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Ana Paula Tavares


1.
Aquela mulher que rasga a noite
com o seu canto de espera
não canta
Abre a boca
e solta os pássaros
que lhe povoam a garganta

2.
Perguntas-me do silêncio
eu digo

meu amor que sabes tu
do eco do silêncio
como podes pedir-me palavras
e tempo
se só o silêncio permite
ao amor mais limpo
erguer a voz
no rumor dos corpos

O mamão

Frágil vagina semeada
pronta, útil, semanal
Nela se alargam as sedes
no meio
cresce
insondável
o vazio...

Vieram muitos

"A massambala cresce a olhos nus"

Vieram muitos
à procura de pasto
traziam olhos rasos da poeira e da sede
e o gado perdido.
Vieram muitos
à promessa de pasto
de capim gordo
das tranqüilas águas do lago.
Vieram de mãos vazias
mas olhos de sede
e sandálias gastas
da procura de pasto.
Ficaram pouco tempo
mas todo o pasto se gastou na sede
enquanto a massambala crescia
a olhos nus.
Partiram com olhos rasos de pasto
limpos de poeira
levaram o gado gordo e as raparigas.

sábado, 2 de março de 2013

Adriano Espínola



O prego

O que mais dói
não é o retrato na parede,

mas é o retrato ali cravado,
persistente,

no centro da mancha
do quadro ausente.

 
O jangadeiro

 
Jangadas amarelas, azuis, brancas,

logo invadem o verde mar bravio,

o mesmo que Iracema, em arrepio,

sentiu banhar de sonho as suas ancas.

Que importa a lenda, ao longe, na história,

se elas cruzam, ligeiras, nesse instante,

o horizonte esticado da memória,

tornando o que se vê mito incessante?

As velas vão e voltam, incontidas,

sobre as ondas (do tempo). O jangadeiro

repete antigos gestos de outras vidas

feitas de sal e sonho verdadeiro.

Qual Ulisses, buscando, repentino,

a sua ilha, o seu rosto e o seu destino.

 
A velha


Esculpida em silêncio,

sentada

e sábia,

fita o horizonte da mágoa.

Ao lado,

o mar murmura

as sílabas do ocaso.


Ó beleza antiga e súbita:

sobre seu ombro

o instante

se debruça, iluminado.

 
Pesca

 
A aurora se desamarra do cais.

Um barco singra o peito

rosado do mar.

A manhã sacode as ondas

e os coqueiros.


O azul estica a linha do horizonte.

Na praia, um pescador arrasta

um sol de algas.

Em suas mãos, um peixe salta:

 
Ó palavra escamosa,

espírito agitado das águas.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Myriam Fraga


O avião

Somente as asas
Aço-metal
Linear o traço.

E o rastro.
Sombra vazia
Do acaso,

Devorando intuições,
Cansaços.

Tão frio-aço (metal)
Vapor de sonho
No espaço.
 
Agosto

Mês de agosto,
Desgosto.

Era de cântaros
(Encântaros)
O barulho da chuva
Nos telhados.

A casa não tinha
Sete torres
Mas o amor era tanto
Que matava.

Mês de agosto,
— Feliz aniversário.

Só o gosto)
O explícito, o cruel,
O fino gosto,
De estender toalhas
Nos altares.
 
Retórica

Quem dirá o que é o mal
E o que é o bem
Se todas as coisas se tocam
E se devoram
— Alfa Ômega —
E no final
É a mesma terra suja
De ninguém?

Banquete

O vinho
que eu bebo
É o preço
De um homem.

O prato que eu como,
Sem fome,
É o salário
Da fome
De um homem.

Mas,

O sonho que eu travo
Com fúria nos dentes

É somente a metade
Do sonho
De um homem.
 

Eugênio de Andrade



Espera

Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.


Epitáfio

Barcos ou não
ardem na tarde.

No ardor do verão
todo o rumor é ave.

Voa coração.
Ou então arde.

Sul

Era verão, havia o muro.
Na praça, a única evidência
eram os pombos, o ardor
da cal. De repente
o silêncio sacudiu as crinas,
correu para o mar.
Pensei: devíamos morrer assim.
Assim: explodir no ar.


 

Sobre o caminho

Nada.

Nem o branco fogo do trigo
nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros
te dirão a palavra.

Não interrogues não perguntes
entre a razão e a turbulência da neve
não há diferença.

Não colecciones dejectos o teu destino és tu.

Despe-te
não há outro caminho.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Jonas Hallgrimsson

Home
I journeyed forth
from the frozen north,
bringing vows with me
on the misty sea.
I have found pleasure
in full measure
but hope to rest
on my Hulda's breast.

There dwells my brother,
my blessèd mother,
my sisters, my friends,
in the flower-starred glens
between mountains and sea --
how familiar to me! --
where my life's blind spark
once sprang from the dark.

I pray I may rest
where the priests and the best
of farmers have trod,
with faith in God
and themselves strong as stone --
as strong as my own! --
and where life flows bright
amid bounties of light.
A Toast to Iceland
Our land of lakes forever fair
below blue mountain summits,
of swans, of salmon leaping where
the silver water plummets,
of glaciers swelling broad and bare
above earth's fiery sinews --
the Lord pour out his largess there
as long as earth continues!
After the Ball
If mother had known that a foreign land
holds thrills both pleasant and horrid!
-- He hurled the golden ball from his hand
and struck my glowing forehead.

And now I plunge through the woods, my mind
distracted, at sixes and sevens,
seeking my white, my delicate hind --
stars are aglint in the heavens.

Ye gods! in that shadowy pool ahead --
the Huntress! a sight to undo me!
Hark! -- a halloo! -- it's finished! -- I'm dead!
The hounds of the nymphs pursue me.
I Send Greetings!
Serene and warm, now southern winds come streaming
to waken all the billows on the ocean,
who crowd toward Iceland with an urgent motion --
isle of my birth! where sand and surf are gleaming.

Oh waves and winds! embrace with bold caresses
the bluffs of home with all their seabirds calling!
Lovingly, waves, salute the boats out trawling!
Lightly, oh winds, kiss glowing cheeks and tresses!

Herald of spring! oh faithful thrush, who flies
fathomless heaven to reach our valleys, bearing
cargoes of song to sing the hills above:

there, if you meet an angel with bright eyes
under the neat, red-tasselled cap she's wearing,
greet her devoutly!
That's the girl I love.
 

Carlos Pena Filho


Soneto para Greta Garbo
(Em louvor da decadência bem comportada)

Entre silêncio e sombra se devora
e em longínquas lembranças se consome
tão longe que esqueceu o próprio nome
e talvez já não sabe por que chora

Perdido o encanto de esperar agora
o antigo deslumbrar que já não cabe
transforma-se em silêncio por que sabe
que o silêncio se oculta e se evapora

Esquiva e só como convém a um dia
despregado do tempo, esconde a tua face
que já foi sol e agora é cinza fria

Mas vê nascer da sombra outra alegria
como se o olhar magoado contemplasse
o mundo em que viveu, mas que não via.

Desmantelo Azul

Então pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas
depois vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas

Para extinguir de nós o azul ausente
e aprisionar o azul nas coisas gratas
Enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas

E afogados em nós nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço

E perdidos no azul nos contemplamos
e vimos que entre nascia um sul
vertiginosamente azul: azul.

Soneto à Fotografia

Libertar-se ligeiro da moldura
é o desejo da face, onde, o desgosto
emigrado do poço de água impura,
vai se aninhar na hora do sol posto.

Do lugar da prisão vem a tortura,
pois vê, do seu retângulo, teu rosto
e acorrentado na parede escura,
não pode engravidar-te para agosto.

Guarda ainda no olhar instante e viagem:
o instante em que foi presa pela imagem
e o roteiro que fez em mundo alheio.

E eterna inveja do seu sósia ausente
que, embora prisioneiro da corrente,
habita num subúrbio do teu seio.

Para Fazer um Soneto

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere um instante ocasional
neste curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial

Ai, adote uma atitude avara
se você preferir a cor local
não use mais que o sol da sua cara
e um pedaço de fundo de quintal

Se não procure o cinza e esta vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse
antes, deixe levá-lo a correnteza

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza
ponha tudo de lado e então comece.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Carlos Drummond de Andrade

Eu te amo porque te amo


Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Cecília Meireles


A arte de ser feliz

Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia
ser feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde, e, em silêncio, ia atirando
com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma
espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para
as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos
magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes
encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que
pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Ás vezes, um
galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar,
cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de
cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem
diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a
olhar, para poder vê-las assim.

Vinícius de Moraes

 
Soneto de véspera


Quando chegares e eu te vir chorando
De tanto te esperar, que te direi?
... E da angústia de amar-te, te esperando
Reencontrada, como te amarei?

Que beijo teu de lágrimas terei
Para esquecer o que vivi lembrando
E que farei da antiga mágoa quando
Não puder te dizer por que chorei?

Como ocultar a sombra em mim suspensa
Pelo martírio da memória imensa
Que a distância criou - fria de vida

Imagem tua que eu compus serena
Atenta ao meu apelo e à minha pena
E que quisera nunca mais perdida...

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Felipe Nepomuceno


As coisas são assim


Não fale demais,
não dificulte a chegada do amor


Quando você esquece o guarda-chuva é um sinal
eu falo, você não
obrigado por ter ligado: é um sinal
eu falo, você não
ganhei um par de cinzas no paraíso
não fale demais
caminhei hoje pela noite buscando você
meus olhos estão doendo
e não gosto de computador
seus olhos
podem mais que seu amor.

Madrid


Capital,
os madrilenhos falam espanhol
e não fotografam o Mediterrâneo.

Os clubes: Real e Atlético.

Os museus: Reina Sofia,
Thyssen Bornemisza,
del Prado, del Jamón.

O rei festeja
perto da ponte dos suicidas.

Nesta cidade sem oceanos
existe uma estátua para Netuno.

A rua del Camino de la Luna
nunca faz esquina
com a Amor de Dios.

Mapoteca


A cidade é mais bem um povoado,
tem apenas 7 gavetas,
vive sozinha, dorme ao meu lado,
tem apenas 7 gavetas:

Mapoteca guarda todo significado.

Buenos Aires


O ar da cidade assovia música,
Buenos Aires deveria se chamar Piazzolla.
Submarino, copos, Quilmes e choripan.
Maradona, Cortázar e Mario Kempes.

Mulheres lindas não precisam ter nome.

Isabel Câmara


Lençóis

Aos domingos se vai ao longe. . .
Lavam-se panos brancos e os
denominamos roupas de cama:
Roupas de baixo
Roupas de cima –
Coisas da Casa
Aos Domingos todos se cansam cedo:
há enlaces matutinos
e muitos hinos.
Aos domingos há missa, música
entreveros. Há quem chore
nalguma hora e há também
possibilidades novas:
Há pares, bares, porres.
Aos domingos semeiam
as lavadeiras
seus azuis/brancos lençóis
lúcidos dos dias de semana.
Para elas lençóis
Prata da Casa
Lençóis louça de Porcelana

Hora sagrada

Te espero.
Sob o travesseiro
a tesoura segura
o Ouro
o Trigo
o abraço ligeiro
de quem tem cheiro
das coisas pagãs
anãs sob o linho fino
o vinho rastreiro.
Faço a feira
vivo beirando a beira
da Orgia
que pia, escorrega,
cortando ligeira
a noite do dia que me alivia.
E aí só cria
meu mundo de fantasia
Agora vê se não chia
Você não é minha tia.

Dezenove do oito de mil novecentos e setenta & quatro

Não entendo nada desta janela fechada
que me aperta a culpa
Doer não doi mais,
nem sangra –
Consegui o que queria:
ser despedida, ficar perdida
falida & alone
olhando o pale da Comedia.
Sei que me chamam Bel
Mel de paixão
sugado da boca louca
de onde sangra o coração
e chora a hora
do leito vazio
da falta de peito
do jeito do beijo
fácil, difícil, sutil.

A verdade é que vivo a mil
sonhando a morte em azul-anil.

Ih, lógica

Só quem sabe a Idade do Ferro
é a Bigorna que o modifica


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Inês Lourenço


Miramar

Acender um cigarro na praia, proteger
o difícil estertor da pequena chama. Anular
o vento na manga do teu casaco. Reter
preso entre os dedos o princípio breve
dessa efêmera combustão.

Satélite

Os meus olhos acolhem um bando
de reflexos, invisíveis a horas
mais sombrias, na luz aberta
deste fim de Junho. Vêm ao meu
encontro os grandes plátanos do
jardim, ameaçados pelas
prováveis escavações do Metro.
Por ora ainda matizam os rostos
dos passantes e a penumbra das
janelas. No passeio das paragens
de autocarro para Ermesinde,
Areosa e outros debruns urbanos,
o volume dos corpos recorta-se
quadriculado pela luz. Seios e
estômagos transferem-me para
um estranho país de aleitamento e
digestões. Sigo num culpado
exílio a dobrar a esquina e inclino
os passos para o Satélite, onde
regresso ao aroma navegável
do cimbalino.

Prado do Repouso

Adoece os olhos este bric-à-brac marmóreo, os
esmaltes, as jarras, a caótica
cenografia dos jazigos, hoje
que todos garantem a sua última
propriedade horizontal. Habitamos
um corpo, tão fácil de ferir, túnica
de sangue, escudo de água, para
o fulgor da vida foi-nos dada
esta veste, não se sabe
para que perecível eternidade.

Remorso

Durante a leitura nocturna
descia, às vezes, as escadas
e procurava no escuro, dentro
de um cesto, uma forma
redonda. Na quadra iluminada
do quarto, mordia depois a maçã
vermelha escura. Era enorme o ruído
dos dentes, no silêncio dessa hora
tardia e irremediável a culpa
de ter destruído aquela polpa húmida
de onde pendia o descarnado pé
no íntimo saber de pequenas sementes
que podia perfeitamente
ter apodrecido em paz.

Fernando Luís Sampaio


[de noite, encostado à parede]


de noite, encostado à parede,
sentia uma força a penetrar-lhe
nas mãos, um murro espalhando-se
pela carne, afastava

os móveis, e lançava
contra o soalho as estrelas
que lhe saíam dos bolsos.

Acendalhas


Era como fechar o dia com as acendalhas, junto ao coração
quase deserto. As mais simples palavras entravam em
desgoverno, a sombra das tuas mãos cobria quase metade da
terra. A meio da sala alguns pratos, incenso, a luz azul do
computador, o sentimento ainda selado por atilhos,
cordames, a música repetia-se cadenciada no cenário
desastrado. E o sol, que desaparecera, e Vénus, que brilhava,
ardiam um no outro como troféus do coração.


Polaroid


Pela tarde o céu a terra
e mesmo tu formam uma densa pasta
de nuvens.
Recordo a tua boca, as tuas pernas
em arco sobre o penedo quente.

Os poços entram em colapso,
o verão arrasta multidões
para as ravinas do lugar comum.

O chapéu descaído
protege-te os olhos
que se movem com translúcido torpor.

Agora que passaram séculos
sobre esse único beijo estou
sem vontade de fingir

a relutância
do meu desejo. Esta polaroid, já seca,
encena também a minha morte.


No parque da cidade


O parque desce sob o meu olhar
instável desce para o lago
onde florescem latas de cerveja, folhas
e a névoa dos namorados.

À superficie das coisas o pó
aquietado da vida, a poalha dos impropérios
da castiça, o fumo do monte branco
a coroar, à hora da bica, a ave da juventude

que assobia canções combatentes.
Muita coisa começou assim, um punhal
a esmagar os sonhos, uma pedra a torcer
o primeiro amor contra o mundo.

Mais tarde, é sempre mais tarde, a morte
de amigos cuspiu de mim toda a cidade,
as ruelas que iam para o fontelo
escureceram também para sempre.

O silêncio, como o inferno, começa sempre
com os outros.


terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Carlos Drummond de Andrade



NÃO DEIXE O AMOR PASSAR


Quando encontrar alguém e esse alguém fizer
seu coração parar de funcionar por alguns segundos,
preste atenção: pode ser a pessoa
mais importante da sua vida.

Se os olhares se cruzarem e, neste momento,
houver o mesmo brilho intenso entre eles,
fique alerta: pode ser a pessoa que você está
esperando desde o dia em que nasceu.

Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo
for apaixonante, e os olhos se encherem
d'água neste momento, perceba:
existe algo mágico entre vocês.

Se o 1º e o último pensamento do seu dia
for essa pessoa, se a vontade de ficar
juntos chegar a apertar o coração, agradeça:
Algo do céu te mandou
um presente divino : O AMOR.

Se um dia tiverem que pedir perdão um
ao outro por algum motivo e, em troca,
receber um abraço, um sorriso, um afago nos cabelos
e os gestos valerem mais que mil palavras,
entregue-se: vocês foram feitos um pro outro.

Se por algum motivo você estiver triste,
se a vida te deu uma rasteira e a outra pessoa
sofrer o seu sofrimento, chorar as suas
lágrimas e enxugá-las com ternura, que
coisa maravilhosa: você poderá contar
com ela em qualquer momento de sua vida.

Se você conseguir, em pensamento, sentir
o cheiro da pessoa como
se ela estivesse ali do seu lado...

Se você achar a pessoa maravilhosamente linda,
mesmo ela estando de pijamas velhos,
chinelos de dedo e cabelos emaranhados...

Se você não consegue trabalhar direito o dia todo,
ansioso pelo encontro que está marcado para a noite...

Se você não consegue imaginar, de maneira
nenhuma, um futuro sem a pessoa ao seu lado...

Se você tiver a certeza que vai ver a outra
envelhecendo e, mesmo assim, tiver a convicção
que vai continuar sendo louco por ela...

Se você preferir fechar os olhos, antes de ver
a outra partindo: é o amor que chegou na sua vida.

Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes
na vida poucas amam ou encontram um amor verdadeiro.

Às vezes encontram e, por não prestarem atenção
nesses sinais, deixam o amor passar,
sem deixá-lo acontecer verdadeiramente.

É o livre-arbítrio. Por isso, preste atenção nos sinais.
Não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem
cego para a melhor coisa da vida: o AMOR !!!

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Maya Angelou

Maya Angelou

Alone

Lying, thinking
Last night
How to find my soul a home
Where water is not thirsty
And bread loaf is not stone
I came up with one thing
And I don't believe I'm wrong
That nobody,
But nobody
Can make it out here alone.

Alone, all alone
Nobody, but nobody
Can make it out here alone.

There are some millionaires
With money they can't use
Their wives run round like banshees
Their children sing the blues
They've got expensive doctors
To cure their hearts of stone.
But nobody
No, nobody
Can make it out here alone.

Alone, all alone
Nobody, but nobody
Can make it out here alone.

Now if you listen closely
I'll tell you what I know
Storm clouds are gathering
The wind is gonna blow
The race of man is suffering
And I can hear the moan,
'Cause nobody,
But nobody
Can make it out here alone.

Alone, all alone
Nobody, but nobody
Can make it out here alone.

On the Pulse of Morning

A Rock, A River, A Tree
Hosts to species long since departed,
Marked the mastodon,
The dinosaur, who left dried tokens
Of their sojourn here
On our planet floor,
Any broad alarm of their hastening doom
Is lost in the gloom of dust and ages.

But today, the Rock cries out to us, clearly, forcefully,
Come, you may stand upon my
Back and face your distant destiny,
But seek no haven in my shadow,
I will give you no hiding place down here.

You, created only a little lower than
The angels, have crouched too long in
The bruising darkness
Have lain too long
Facedown in ignorance,
Your mouths spilling words
Armed for slaughter.

The Rock cries out to us today,
You may stand upon me,
But do not hide your face.

Awaking in New York

 Curtains forcing their will
against the wind,
children sleep,
exchanging dreams with
seraphim. The city
drags itself awake on
subway straps; and
I, an alarm, awake as a
rumor of war,
lie stretching into dawn,
unasked and unheeded.

Passing Time

Your skin like dawn
Mine like musk

One paints the beginning
of a certain end.

The other, the end of a
sure beginning.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Poema do mês



 



Reverso
                                  Magui Nólia

se a poesia é uma lua
não sabe a chuva espirrada ou despejada
nem o cachorro plantado
entre latas vazias e restos de comida

 
se a poesia é um unicórnio
sem asas, trombetas e longitudes
não dá conta a lesma esparramada
sobre a pedra na dança da manhã
talvez o olhar perdido e não achado
do condor nas fraldas do altiplano

 
se a poesia é poesia
curta, escandalosa, impedida
sabe o verso inacabado e boquiaberto
deixado no meu colo arfante
ao ver sua sombra se diluir no meio da noite

 
se há poesia, se é poesia
livros e livros mostram e escondem
o reverso da medalha
o re-verso da medalha

Gabriela Marcondes


Sobremesa da eternidade

poetas são abutres
dos próprios desejos
mastigam com binóculos
os próprios medos

Papiro

No impenetrável palimpsesto
dorme o verso que procuro.
No revés do que vejo
a ideia que salta através do muro
oferece aos olhos um caleidoscópio.
No dédalo das entrelinhas
o sentido que ilumina o escuro.
Código desta grafia secreta
que perambula pela poesia bêbada
adormecida na inaptidão do poeta.

Latitude

nos subúrbios de si
descobrir aos poucos
a matemática do medo

a tradição das coisas se quebra
diante das perguntas do presente

move-se cuidadosamente
por entre atitude dos atos

Radiografia

na arritmia das horas
articular espaço-temo
articular o desejo
eis a minha fratura exposta

Elisa Lucinda


Amanhecimento

De tanta noite que dormi contigo
no sono acordado dos amores
de tudo que desembocamos em amanhecimento
a aurora acabou por virar processo.
Mesmo agora
quando nossos poentes se acumulam
quando nossos destinos se torturam
no acaso ocaso das escolhas
as ternas folhas roçam
a dura parede.
nossa sede se esconde
atrás do tronco da árvore
e geme muda de modo a
só nós ouvirmos.
Vai assim seguindo o desfile das tentativas de nãos
o pio de todas as asneiras
todas as besteiras se acumulam em vão ao pé da montanha
para um dia partirem em revoada.
Ainda que nos anoiteça
tem manhã nessa invernada
Violões, canções, invenções de alvorada...
Ninguém repara,
nossa noite está acostumada.

Incompreensão dos Mistérios

Saudades de minha mãe.
Sua morte faz um ano e um fato
Essa coisa fez
eu brigar pela primeira vez
com a natureza das coisas:
que desperdício, que descuido
que burrice de Deus!
Não de ela perder a vida
mas a vida de perdê-la.
Olho pra ela e seu retrato.
Nesse dia, Deus deu uma saidinha
e o vice era fraco.

Safena

Sabe o que é um coração
amar ao máximo de seu sangue?
Bater até o auge de seu baticum?
Não, você não sabe de jeito nenhum.
Agora chega.
Reforma no meu peito!
Pedreiros, pintores, raspadores de mágoas
aproximem-se!
Rolos, rolas, tinta, tijolo
comecem a obra!
Por favor, mestre de Horas
Tempo, meu fiel carpinteiro
comece você primeiro passando verniz nos móveis
e vamos tudo de novo do novo começo.

Iansã, Oxum, Afrodite, Vênus e Nossa Senhora
apertem os cintos
Adeus ao sinto muito do meu jeito
Pitos ventres pernas
aticem as velas
que lá vou de novo na solteirice
exposta ao mar da mulatice
à honra das novas uniões

Vassouras, rodos, águas, flanelas e cercas
Protejam as beiras
lustrem as superfícies
aspirem os tapetes
Vai começar o banquete
de amar de novo
Gatos, heróis, artistas, príncipes e foliões
Façam todos suas inscrições.
Sim. Vestirei vermelho carmim escarlate

O homem que hoje me amar
Encontrará outro lá dentro.
Pois que o mate.

Reconstituição

Tive de repente
saudade da bebida que eu estava bebendo...
tive saudade e tentei me lembrar que gosto faltava,
qual era a bebida...
Fui procurando entre copos e móveis
e dei com sua boca.

A saudade era dela
A bebida era o beijo.

Affonso Ávila

Da Vinci, La Scapigliata
Soneto de Amor

O coração não pulsa a clave dura
Cantando a rosa de si mesma urdida,
Seu tempo esculpe a aurora sem medida
Sobre as orlas da carne que amadura.

Nenhuma fonte aqui nos inaugura
Com a floração de água surpreendida,
Revolvemos os campos onde a vida
Pendoa-se e aos seus dias transfigura.

Confluência de vento e flauta rústica,
Em nosso lábio colhem outra acústica
Os pássaros moldados pela tarde.

Entanto, despojando-se de tudo
O amor ainda se apura e, embora mudo,
Faz do silêncio a fórmula de alarde.

Anti-soneto ouropretano I

da vila rica de ouro preto o ouro
do preito o ouro do pilar o ouro
do pórtico o ouro do púlpito o ouro
do paramento o ouro do pálio o ouro

do panteão o ouro do pacto o ouro
do percalço o ouro do perjúrio o ouro
do patíbulo o ouro do proscrito o ouro
do prêmio o ouro do palimpsesto o ouro

do pedágio o ouro do pecado o ouro

do pulha o ouro do podre o ouro
do polvo o ouro do puro o ouro

do pobre o ouro do povo o ouro
do poeta o ouro do peito o ouro
da rima rica de outro preto o ouro


Anti-soneto ouropretano II
 
a cidade da hera e de idade
a antiguidade de édito e de idade
a posteridade de efígie e de idade
a eternidade de essência e de idade

a majestade de espírito e de idade
a gravidade de espectro e de idade
a dignidade de ênfase e de idade
a imobilidade de enlevo e de idade

a obliquidade de eflúvio e de idade
a soledade de exílio e de idade
a fatalidade de exaustão e de idade

a castidade de espera e de idade
a carnalidade de efêmero e de idade
a cidade de eros e de idade


Os negros de Itaverava

Três negros de Itaverava,
irmãos em sangue e aflição,
não dormiam, como os outros,
a noite que é sujeição,
dormiam, sim, as auroras
— as luzes em combustão
dos sonhos que, mesmo estéreis,
sucedem no coração.

Enquanto as almas penadas
nos caminhos pranteavam
o corpo que se perdera
e os cães com elas choravam,
na senzala não se ouviam
os passos que se cuidavam,
as vozes que, a medo e susto,
no paiol confabulavam.

Para quem é jaula o dia,
que seja conspiração
de perfídia e sortilégio,
de roubo e contravenção
a noite cujas estradas
não se sabe aonde dão,
a noite que enlaça o negro
com seus silêncios de irmão.


sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Giuseppe Ghiaroni


 
Depois

Depois de ter tentado e conseguido,
depois de ter obtido e abandonado;
depois de ter seguido e ter chegado;
depois de ter chegado e prosseguido!
Depois de ter querido e ter amado;
depois de ter amado e ter perdido;
depois de ter lutado e ter vencido;
depois de ter vencido e fracassado!

Depois que o sonho comandou: ''Avança!"
Depois que a vida ironizou:"Criança!"
Depois que idade sentenciou: ''Jamais!"...

Depois de tudo que escarnece e exalta,
depois de tudo, quando nada falta,
depois de tudo, falta muito mais!

Intermezzo

Um ligeiro intervalo de esperança
foi a nossa escapada da rotina:
cada dia uma glória repentina
cada noite a euforia da mudança.

Um ligeiro intervalo de esperança
e eu julguei ter achado o ouro e a mina.
Vi no teu rosto aquela luz divina,
voltei a ser poeta e a ser criança.

Foi a nossa embriaguez dos impossíveis,
ilusão de vencer os invencíveis
e de alcançar o que ninguém alcança.

Mas foi bom.Foi tão mais do que mereço,
que hoje,em desespero,eu te agradeço
um ligeiro intervalo de esperança!

Continuidade

Existe um cão que ladra quando eu passo,
como se visse um bêbado, um mendigo.
E, no entanto, esse cão foi meu amigo
como tantos amigos que ainda faço.


À noite, com que alegre estardalhaço
vinha encontrar-me no portão antigo,
enquanto a dona vinha ter comigo
e, sorrindo, apoiava-se ao meu braço.

Hoje ele faz a outro a mesma festa
e ela o mesmo carinho, tão honesta
como se nem notasse a transição.

Eu rio dessa triste brincadeira.
mas quando uma mulher é traiçoeira
não se pode confiar nem no seu cão!


Pontos de vista


Na minha infancia,quando eu me excedia
quando eu fazia alguma coisa errada
se alguém ralhava minha mãe dizia
-Ele é uma criança,não entende nada!

Por dentro eu ria satisfeito e mudo.
Eu era um homem,entendia tudo.

Hoje que escrevo poemas
e pareço ter tido algum estudo
dizem quando me veem com os meus problemas:
-Ele é um homem,ele entende tudo!

Por dentro,alma confusa e atarantada
eu sou criança,não entendo nada.
...

Ana Lucia Sorrentino


A noite seduz

Um brinco de pérola e diamante
reluz na pele negra da noite.
O sabiá que traz meu sono
nas sempre altas madrugadas,
hoje me falta,
emudecido, assustado.
Creio ter se enamorado.
Talvez não esperasse,
não havendo hoje festa,
um céu vestido a rigor.
Talvez meu fiel sabiá
tenha hoje calado de amor...

Sem volta

Eu me queria como fui um dia,
quando ainda não sabia
coisas que depois vim a saber.
Eu me queria como antes de perceber
o que depois percebi,
sem nem ao menos querer.
Eu me queria como fui um dia:
inocente, crédula, pia.
Se a maturidade castiga

com a decepção do descrer,
a senilidade talvez seja
um indulto da natureza,
pelo envelhecer.
Custando a morte a chegar,
já fartos de aprender,
nela descansamos,
conseguindo, enfim, esquecer.
Flutuemos

Quando tudo que não foi
não mais tiver importância
nos vãos espaços das vãs lembranças;
quando tudo o que há de vir
não tiver mais o poder
de causar qualquer receio
e não mais puser a perder
do sono de hoje o esteio;
quando não mais brotar embriaguez
da fértil semente do olhar alheio
e como uma flor cansada
a vaidade murchar de vez;
quando o necessário for
vergonhosamente flagrado
em sua mais absoluta inutilidade
e as fugidias verdades compreenderem
de todas as coisas o caráter passageiro;
quando o que restar for apenas

movimento
talvez, então,
se instale, enfim, a leveza.
Flutuaremos no nada
sorrindo zombeteiramente
das bobagens da vida.

Maturidade

Num susto me acomete
inesperado recato.
Um bem-vindo autoamor,
um quê de orgulho e vaidade.
Súbita maturidade,
contrariando o esperado,
não vem aos poucos,
a cada ruga
ou fragilidade.
Vem de uma só vez,
inteira e com gosto de novidade.
Me possui,
me traz cuidados comigo,
mitiga minhas verdades,
e me imprime dignidade.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

José Carlos Peliano


Índio e víndio


o mundo não é lindo
é líndio
o sonho não vai indo
vai índio
o sol não está rindo
está ríndio
meu amor não vem vindo
vem víndio
mais que unindo
vamos nos uníndio
não há esperança ainda
há esperança aíndia!!!

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Kátia Drummond

A menina afegã, de Steve McCurry
 

Mãe

Esta vida que me deste, eu não a entendo.
Busco encontrar explicações, a esmo.
Não há qualquer vestígio. Só suspeitas.
Uma razão sequer. Procuro em vão.
Quando partires, se me antecederes,
dá-me um sinal de vida, qualquer toque.
Compreenderei quem sabe, então,
essa amargura de vir e ir,
assim, sem mais nem menos.
Como um inseto trôpego,
um verme, um cão.

Enquanto Ana Terra não vem

Já vivi a intensidade exaustiva dos retiros.
Recitei todas as preces e tomei todos os votos.
Jejuei em busca de sanar as dores deste mundo.
Não matei, não roubei, não menti.
Cometi virtudes, purifiquei o corpo e a alma.
Realizei sonhos e multipliquei amores.
Convivi com todos os seres vivos e mortos.
Só não amei a Deus sobre todas as coisas.

Agora, resta-me estirar a rede na varanda,
acender a lua, deitar e sonhar.

Enquanto Ana Terra não acende o sol.

Brisa

Você acorda cantando,
como faz o passarinho,
anunciando a chegada
do dia, devagarinho.
O sol chega e você cala.
E pra ouvir a sua voz,
desenho o sol indo embora,
faço outra lua lá fora,
desenho mil rouxinóis.
Amanhece de mansinho
e o sol brilha novamente.
Parece que a terra inteira
está brotando de repente.
O mato cheira mais forte,
a chuva cai levemente,
os carneirinhos no céu
viram flores, viram gente.
Lá vai o dia indo embora,
seguindo pra outro lugar.
A mansa noite lá fora
está começando a chegar.
Enquanto você descansa
do seu dia de aprendiz,
eu desenho outra esperança
onde você é criança,
onde você é atriz.

Vida integral

Você é flor de açucena
Planta verde de quintal
Filhote de passarinho
Cigarra no mangueiral
Peixe de fundo de rio
Mel de abelha mandaçaia
Beija-flor no milharal.

Você tem cheiro de campo
Brilho de sol no trigal
Gosto de caldo-de-cana
Cheiro de flor matinal
Você é meu passarinho
É meu cavalo-marinho
É meu mundo vegetal.

Quero ver você crescer
Como cresce a esperança
E ver você renascer
No seu jeito de criança
Transformar a vida inteira
Água, terra, fogo e ar
Quero ver você viver
Quero ver você brilhar.