Peliano costuma brincar que a poes-ia e foram os poetas que a trouxeram de volta! Uma de suas invenções mais ricas é conseguir por em palavras lirismos maravilhosos, aqueles que percebemos de repente e temos a impressão que não vamos conseguir exprimi-los. Exemplos: de Manoel de Barros -"Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura. De tarde o deserto já estava em nós"; de Ernesto Sabato - "Sólo quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para ... recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido"; de Thiago de Mello - "Faz escuro mas eu canto"; de Helen Keller - "Nunca se deve engatinhar quando o impulso é voar"; de Millôr Fernandes - "Sim, do mundo nada se leva. Mas é formidável ter uma porção de coisas a que dizer adeus". É como teria exclamado Michelangelo que não fora ele quem esculpiu Davi, pois este já estava pronto dentro da pedra, Michelangelo apenas tirara-o de lá. Então, para Peliano, o lirismo é quando nos abraça o mundo fora de nós, cochicha seu mistério em nossos ouvidos e o pegamos com as mãos da poesia em seus muitos dedos de expressão.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Ivan Junqueira

Talvez o vento saiba
Talvez o vento saiba dos meus passos,
das sendas que os meus pés já não abordam,
das ondas cujas cristas não transbordam
senão o sal que escorre dos meus braços.
As sereias que ouvi não mais acordam
à cálida pressão dos meus abraços,
e o que a infância teceu entre sargaços
as agulhas do tempo já não bordam.

Só vejo sobre a areia vagos traços
de tudo o que meus olhos mal recordam
e os dentes, por inúteis, não concordam
sequer em mastigar como bagaços.

Talvez se lembre o vento desses laços
que a dura mão de Deus fez em pedaços.

Esse punhado de ossosA Moacyr Félix


Esse punhado de ossos que, na areia,
alveja e estala à luz do sol a pino
moveu-se outrora, esguio e bailarino,
como se move o sangue numa veia.
Moveu-se em vão, talvez, porque o destino
lhe foi hostil e, astuto, em sua teia
bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia
o que havia de raro
adunco do assassino,
nas úlceras do mendigo,
na voz melíflua do bispo,
no martírio dos suicidas,
na mão crispada das vítimas,
na forca e na Guilhotina,
no sangue sobre o patíbulo,
no sexo do hermafrodita,
no ventre da meretriz
que deu à luz uma harpia,
nas bestas do Apocalipse,
no selo que foi rompido,
nas trombetas do Juízo,
no êxtase mudo dos místicos,
na agonia dos epígonos,
no corvo que bica as vísceras
de alguém cujo sacrifício
vale tanto quanto a epígrafe
de uma página vazia.
Paz, enfim, até no ríctus
que torce a boca do Cristo.

Hoje


A sensação oca de que tudo acabou
o pânico impresso na face dos nervos
o solitário inverno da carne
a lágrima, a doce lágrima impossível...
e a chuva soluçando devagar
sobre o esqueleto tortuoso das árvores

E se eu disser
E se eu disser que te amo - assim, de cara,
sem mais delonga ou tímidos rodeios,
sem nem saber se a confissão te enfara
ou se te apraz o emprego de tais meios?
E se eu disser que sonho com teus seios,
teu ventre, tuas coxas, tua clara
maneira de sorrir, os lábios cheios
da luz que escorre de uma estrela rara?
E se eu disser que à noite não consigo
sequer adormecer porque me agarro
à imagem que de ti em vão persigo?
Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro
em tua ausência - essa lâmina exata
que me penetra e fere e sangra e mata.




terça-feira, 14 de agosto de 2012

Ismael Nery

Poema

As gargalhadas
Os prantos
Os gritos de admiração e de pavor
Os gemidos de gozo e de sofrimento
O múrmurio do mar
O troar dos canhões
E todos os barulhos do universo
— Tudo isto penetra no meu ouvido
Como no ouvido
De uma estátua de pedra de olhos fechados,
Imóvel,
Que presidisse a vida,
Que registrasse o tempo
E que pensasse
— O dia em que visses essa estátua olhando
Poderias afirmar — não existe Deus. —
E terias então o direito de julgar.

Confissão

Não quero ser Deus por orgulho.
Eu tenho esta grande diferença de Satã.
Quero ser Deus por necessidade, por vocação.
Não me conformo nem com o espaço nem com o tempo,
Nem com o limite de coisa alguma.
Tenho fome e sede de tudo,
Implacável
Crescente.
Talvez seja esta a minha diferença de Deus
Que tem fome e sede de mim,
Implacável,
Crescente,
Eterna
— De mim que me desprezo e me acredito um nada.

Poema para Ela

Acabaram-se os tempos.
Morreram as árvores e os homens,
Destruíram-se as casas,
Submergiram-se as montanhas.
Depois o mar desapareceu.
O mundo transformou-se numa enorme planície
Onde só existe areia e uma tristeza infinita.
Um anjo sobrevoa os destroços da terra,
Olhando a cólera de um Deus ofendido.
E encontrou nossos dois corpos fortemente enlaçados
Que a raiva do Senhor não quis destruir
Para a eterna lembrança do maior amor.

Eu

Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas
Eu sou o que não existe entre o que existe.
Eu sou tudo sem ser coisa alguma.
Eu sou o amor entre os esposos,
Eu sou o marido e a mulher,
Eu sou a unidade infinita
Eu sou um deus com princípio
Eu sou poeta!

Eu tenho raiva de ter nascido eu,
Mas eu só gosto de mim e de quem gosta de mim.
O mundo sem mim acabaria inútil.
Eu sou o sucessor do poeta Jesus Cristo
Encarregado dos sentidos do universo.
Eu sou o poeta Ismael Nery
Que às vezes não gosta de si.

Eu sou o profeta anônimo.
Eu sou os olhos dos cegos.
Eu sou o ouvido dos surdos.
Eu sou a língua dos mudos.
Eu sou o profeta desconhecido, cego, surdo e mudo
Quase como todo o mundo.

domingo, 12 de agosto de 2012

Celina Ferreira

Cantilena
 
Não quero mostrar-me triste
porque de mim fugireis.
Mas no fundo eu bem sou triste,
mas o fundo não vereis.
Vou cantar. Talvez cantando
coisa minha sabereis.
Pois, se me virdes chorando,
eu bem sei que fugireis.
Vou cantando tão de manso,
que talvez nem pensareis
que por dentro vou chorando,
mas por dentro não vereis.
Vou cantando, pois cantando,
vós talvez me entendereis.


O sexo no espelho

O amante
predispunha o espelho
para duplicar o amor.

Múltiplos corpos,
avidez do resgate,
a noite lúdica.

Hoje, no espelho,
a solidão em dobro.


Bom dia, poesia

Acordo leve e contente
entre cores e alegria.
Penso no mar, nas montanhas,
nos rios , na maresia,
nos peixinhos, nos corais,
no sol que me traz o dia.
Em tudo sinto a grandeza,
em tudo vivo a poesia.

Abro os olhos, que beleza
que Deus agora me envia.
Sou dona dos horizontes,
dos verdes e montes,
da terna e doce harmonia,
dos frutos que vêm da terra,
dos tesouros que ela encerra,
das riquezas que ela cria.

Sinto a paz dentro de mim
e nada perturbaria
a minha grande esperança
que um dia cada criança
viva também a poesia
que recolho no universo
e concentro em cada verso
que distribuo: Bom dia.


Espelho e face

Procuro no espelho
a face remota.
Não aquela que é visível.
A que o vidro não comporta.

Retiro-a, sem medo,
descubro-a, ignota.
Não a face que percebo
em mim mesma, superposta.

Mas imagem lúcida,
clara e luminosa,
que cada dia enterrara
sob a face que está morta.