Peliano costuma brincar que a poes-ia e foram os poetas que a trouxeram de volta! Uma de suas invenções mais ricas é conseguir por em palavras lirismos maravilhosos, aqueles que percebemos de repente e temos a impressão que não vamos conseguir exprimi-los. Exemplos: de Manoel de Barros -"Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura. De tarde o deserto já estava em nós"; de Ernesto Sabato - "Sólo quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para ... recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido"; de Thiago de Mello - "Faz escuro mas eu canto"; de Helen Keller - "Nunca se deve engatinhar quando o impulso é voar"; de Millôr Fernandes - "Sim, do mundo nada se leva. Mas é formidável ter uma porção de coisas a que dizer adeus". É como teria exclamado Michelangelo que não fora ele quem esculpiu Davi, pois este já estava pronto dentro da pedra, Michelangelo apenas tirara-o de lá. Então, para Peliano, o lirismo é quando nos abraça o mundo fora de nós, cochicha seu mistério em nossos ouvidos e o pegamos com as mãos da poesia em seus muitos dedos de expressão.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Mário Chamie

milho e um céu

Plantio
 
Cava,
então descansa.
Enxada; fio de corte corre o braço
de cima
e marca: mês, mês de sonda.
Cova.

Joga,
então não pensa.
Semente; grão de poda larga a palma
de lado
e seca; rês, rês de malha.
Cava.

Calca
e não relembra.
Demência; mão de louco planta o vau
de perto
e talha: três, três de paus.
Cova.

Molha
e não dispensa.
Adubo; pó de esterco mancha o rego
de longo
e forma: nó, nó de resmo.
Joga.

Troca,
então condena.
Contrato; quê de paga perde o ganho
de hora
e troça: mais, mais de ano.
Calca.

Cova:
e não se espanta.
Plantio; fé e safra sofre o homem
de morte
e morre: rês, rés de fome
cava.

 
O tolo e o sábio
 
O sábio que há em você
não sabe o que sabe
o tolo que não se vê.

Sabe que não se vê
o tolo que não sabe
o que há de sábio em você.

Mas do tolo que há em você
não sabe o sábio que você vê.


Chuva Interior

Quando saia de casa
percebeu que a chuva
soletrava
uma palavra sem nexo
na pedra da calçada.
Não percebeu
que percebia
que a chuva que chovia
não chovia
na rua por onde
andava.
Era a chuva
que trazia
de dentro de sua casa;
era a chuva
que molhava
o seu silêncio
molhado
na pedra que carregava.
Um silêncio
feito mina,
explosivo sem palavra,
quase um fio de conversa
no seu nexo de rotina
em cada esquina
que dobrava.
Fora de casa,
seco na calçada,
percebeu que percebia
no auge de sua raiva
que a chuva não mais chovia
nas águas que imaginava


Forca na força

a palavra na boca
na boca a palavra: força
a força da palavra força
a palavra rolha fofa
a rolha fofa sem força
a palavra em folha solta
a força da palavra forca
a palavra de boca em boca
na boca a palavra forca
a palavra e sua força

John Siddique

 
Love and the Body

and all there is, is love and the body,
nothing to give but this moment,
and this moment and this moment,

and all there has ever been is you and I
so easily lost in the feelings, the reaching,
and all there is, is love and the body.

All these faces and you and I
the space between, like the morning light,
and this moment, and this moment.

Surrounded by your sound, as if bees
were swarming, or a distant voice calling your name,
and all there is, is love and the body.

Our bodies, our trees of life.
The fruit of ourselves, giving and self-giving,
and this moment and this moment.

You are an unanswered question.
All there is, is love and the body.
Action of blood, character, skin, muscle, thought,
and this moment and this moment.

Thirst

Imagine thirst without knowing water.
And you ask me what freedom means.
Imagine love without love.

Some things are unthinkable,
until one day the unthinkable is here.
Imagine thirst without knowing water.

Some things we assume just are as they are,
no action is taken to make or sustain them.
Imagine love without love.

It is fear that eats the heart: fear and
endless talk, and not risking a step.
Imagine thirst without knowing water.

Fold away your beautiful thoughts.
Talk away curiosity, chatter away truth.
Imagine love without love.

Imagine believing in the whispers,
the screams and the gossip. Dancing to a tune
with no song to sing inside you.
Imagine love without love.

Inside # 2

“There is no more time”
9.47, the peak of the morning rush is
beginning to subside, though the tube is
closed so he’s taking the bus to work.
A woman at the front of the bus is
on her way to her course. There is
a girl on her way to the dentist, and
a cleaner on her way home. A bus full
of people like this and more.

Then there is no more time, just a flash.
No time for fear. Here then gone, or
unconscious, or at the edge, or screaming.
All fixed in their own heads a moment ago,
busy being late for things, tired, looking forward
to a cup of tea, or just getting there
to get out of this traffic.

9.47 lasts forever and ticks on for the rest of us.
Before and after the application of words. Divide
the hour, divide the minute, sub-divide the second,
keep on dividing and time ceases to exist.

Desire for sight (after Lorca)

When gossip starts all that is left is gossip.

When fear takes hold, all that is left is the fear.

Fold away your papers,

colour in the outlines.

Regret is the first town our train will pass though.

Unknowing, the confusion of unknowing.

Let my country see itself,
may its people be visible to each other.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Marize de Castro



Prece
 
Quem aqui me trouxe
brincava de ser Deus.
Banhou-me em águas turvas.
Desenlaçou-me.

Se não sou amada, adoeço.
Sigo para o último abismo.
Vou ao encontro da fêmea
tatuada de auroras.

Ajoelho-me.

Oro pela fragilidade das horas.

Erma


Recolho-me tão profundamente
que tudo me alcança:
mísseis, desastres, lanças.

Recostada ao rosto de Deus
pedi-lhe a fé perdida
a palavra antiga – invencível.

Ele me deu o mar no nome
e uma fome borgeana, dizendo-me:
Eis sua herança, jovem senhora
de velhíssima alma e furiosas lembranças.


Néctar

A verdade aproxima-se.
Olha-me com os olhos
abismados da beleza.

Não sou a mulher
que corta os pulsos e se joga da janela
nem aquela que abre o gás
nem mesmo a loba que entra no rio
com os bolsos cheios de pedra.

Sou todas elas.

Escrever me fez suportar todo incêndio

– toda quimera.

 
Predestinada

Nua, às três da madrugada,
ainda escavo minas
instaladas em minha alma.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

José Carlos Peliano



Oração para Luís Fernando Veríssimo:

"Oh! Luís, divino Luís, todo poderoso Luís, se acerte com Fernando, seu irmão e companheiro de fé, Senhor de si e de seus desígnios mais louvados, que vive com você na mesma pessoa, encerrem as desavenças e os distúrbios internos, escondidos e mal sabidos, que tomam corpo, mente e espírito e trazem apreensão e preocupação a todos nós que os queremos bem! Recuperem a boa relação e convivência, a paz e a tranquilidade e mais anos e anos de vida. trazendo de volta ao convívio o amor Veríssimo! Que o sax da boa nova esparrame o som por todos os cantos e ouvidos! Assim seja!"

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Paulo Bonfim



Soneto de transfiguração

Venho de longe, trago o pensamento
Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonias.

Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.

Retenho dentro da alma, preso à quilha
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha

Onde sonham morrer os albatrozes…
Venho de longe a contornar a esmo,
O cabo das tormentas de mim mesmo.

Outro serei amanhã

Outro serei amanhã
Quando o silêncio pousar
Na rosa branca dos ventos
Rosa de espuma e luar.
Outro serei, quando as aves
Voltarem da tempestade,
Trazendo a luzir na treva
Sementes de eternidade.
Outro serei, quando a noite,
Como nunca, de mansinho,
Vier espreitar-me os passos,
Junto à incerteza e ao caminho.
Outro serei amanhã
E entre dois esquecimentos
Levarei meu sorriso

Basta ser o outro

Basta de ser o outro…
O herdeiro da terra,
O neto de seus avós!
Basta de ser
O que leu
E o que ouviu…
À terra devolvo
O cálcio, o ferro, o fósforo;
À núvem devolvo a água rubra,
Aos mortos,
As angústias herdadas,
Aos vivos
Os gestos e as palavras recebidas…
Basta de ser o outro,
Colcha de retalhos alheios,
Cobrindo um frio verdadeiro.

Pastor já fui desse rebanho alado

Pastor já fui desse rebanho alado,
Que pelos céus caminha, pensativo,
A ruminar a grama azul do prado
E a desmanchar-se em pensamento vivo.

Pastor já fui de olhar perdido e calmo,
Guardando as reses pelo campo etéreo,
Entoei sobre a campina cada salmo
De um livro que perdi sobre o mistério.

Já fui pastor fora de certo espaço,
Das loucas dimensões em que me banho,
Não sei se é no futuro em que me abraço

Ou no passado desse meu rebanho!
Pastor já fui, hoje arrebanho a mágoa
Do meu rebanho a desfazer-se em água.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Yoko Ono



Color Piece

Visual world not exactly shaped –
Sense of smell, anticipation, senses that
are not exactly shaped —
Dark shadows casted –
Rat colors with faint hairly smells and pale
dark spots like those on a transparent sheet
of celluloid –
Rose color with a glitter and softness that
is cool and motional –
The kind of color that does not exist by
itself but only when it is casted between
two moving objects –
The color like a remaining stain of illusion
on a moving object –
The color that only happens when movements
cut the air in a certain way and go immediately.
Use such color to tint your absent thoughts.
Have absent thoughts for a long time.

Map Piece

Draw an imaginary map.
Put a goal mark on the map where you
want to go.
Go walking on an actual street according
to your map.
If there is no street where it should be
according to the map, make one by putting
the obstacles aside.
When you reach the goal, ask the name of
the city and give flowers to the first
person you meet.
The map must be followed exactly, or the
event has to be dropped altogether.
Ask your friends to write maps.
Give your friends maps.

Mirror Piece

Instead of obtaining a mirror,
obtain a person.
Look into him.
Use different people.
Old, young, fat, small, etc.

Air Talk

It’s sad that the air is the only thing we share.
No matter how close we get to each other,
there is always air between us.
It’s also nice that we share the air,
No matter how far apart we are
the air links us.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Leonardo Fróes

 

Introdução à arte das montanhas

Um animal passeia nas montanhas.
Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
um organismo em movimento reagindo a passadas,
e só. Não sente fome nem saudade nem sede,
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
Puxado sempre para cima, o animal é um ímã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,
ainda, que agora tem de aprender a descer.

Ambições de assombrações

Incertos os galhos tortos, você
vê, armam-se como esqueletos
de silenciosa e fria carnadura
como se, no escuro, de cada galho
surgissem numerosas pessoas
vendo você observá-las na sua
desabitada languidez vegetal
de pessoas nuas resinosas
querendo corporificar sem poder
gestos aflitos, ritos solitários
músicas de imperceptível tremor
e, naturalmente, a semente da morte
inoculada por cada criatura
no seu próprio olho desmesurado.

Estar estando

A impressão de estar, o lento
espanto que se repete. Aqui e onde, eis como
povôo ao mesmo tempo dois espaços
ou, mais que isso, passo a noite inteira
vivendo as sensações de um fragmento
que me é próprio, ou é-me o corpo todo,
e de repente vai sem deixar marca
entre o que foi e o há de ser. Deslizo
nessa fronteira vã que não separa
nada e ninguém, passado nem presente, simples
e uniforme
faixa de areia da qual jorram palavras,
visões, retratos, intenções. É sempre agora
e nunca, sempre sono e manhã, sempre uma coisa
que num jogo dual se nulifica
para sobrar de nós sempre esse caldo
de frustração e medo - ou de esperança.

Dia de dilúvio

Quando chove assim tão seguidamente na serra
e começa a pingar água na casa e a goteira
cresce e a pia entope e alaga o chão,
quando não cessa esse barulho insistente
de água penetrando em tudo e rolando,
sinto uma desproteção total violenta
e eu mesmo sendo dissolvido também
nessa casa alagada, não me acho
enquanto solidez: vou flutuando
como onda inconstante na correnteza.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Vera Pavlova


 
Perhaps when our bodies throb and rub

Perhaps when our bodies throb and rub
against each other, they produce a sound
inaudible to us but heard up there, in the clouds and higher,
by those who can no longer hear common sounds . . .
Or, maybe, this is how He wants to check by ear: are we still intact?
No cracks in mortal vessels? And to this end He bangs
men against women?
 
Another poet came into being
 
Another poet came into being
when I saw the life of life,
the death of death:
the child I had birthed.
That was my beginning:
blood burning the groin,
the soul soaring, the baby wailing
in the arms of a nurse
 
Learn to look past
 
Learn to look past,
to be the first to part.
Tears, saliva, sperm
are no solvents for solitude.
On gilded wedding bowls,
on prostitutes’ plastic cups,
an eye can see, if skilled,
solitude’s bitter residue.
 
A beast in winter
 
A beast in winter,
a plant in spring,
an insect in summer,
a bird in autumn.
The rest of the time I am a woman

domingo, 11 de novembro de 2012

Gilka Machado



Ser Mulher ...

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior...

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor...

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...

Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!
 
Particularidades ...

Muitas vezes, a sós, eu me analiso e estudo,
os meus gostos crimino e busco, em vão torcê-los;
é incrível a paixão que me absorve por tudo
quanto é sedoso, suave ao tato: a coma... Os pêlos...

Amo as noites de luar porque são de veludo,
delicio-me quando, acaso, sinto, pelos
meus frágeis membros, sobre o meu corpo desnudo
em carícias sutis, rolarem-me os cabelos.

Pela fria estação, que aos mais seres eriça,
andam-me pelo corpo espasmos repetidos,
às luvas de camurça, às boas, à pelica...

O meu tato se estende a todos os sentidos;
sou toda languidez, sonolência, preguiça,
se me quedo a fitar tapetes estendidos.

Incenso
 
Quando, dentro de um templo, a corola de prata
do turíbulo oscila e todo o ambiente incensa,
fica pairando no ar, intangível e densa,
uma escada espiral que aos poucos se desata.

Enquanto bamboleia essa escada e suspensa
paira, uma ânsia de céus o meu ser arrebata,
e por ela a subir numa fuga insensata,
vai minha alma ganhando o rumo azul da crença.

O turíbulo é uma ave a esvoaçar, quando em quando
arde o incenso ... Um rumor ondula, no ar se espalma,
sinto no meu olfato asas brancas roçando.

E, sempre que de um templo o largo umbral transponho,
logo o incenso me enleva e transporta minha alma
à presença de Deus na atmosfera do sonho.
 
Lembranças

Teus retratos — figuras esmaecidas;
mostram pouco, muito pouco do que foste.
Tuas cartas — palavras em desgaste,
dizem menos, muito menos
do que outrora me diziam
teus silêncios afagantes...
Só o espelho da minha memória
conserva nítida, imutável
a projeção de tua formosura,
só nos folhos dos meus sentidos
pairam vívidas
em relevo
as frases que teu carinho
soube nelas imprimir.

Sou a urna funerária de tua beleza
que a saudade
embalsamou.

Quando chegar o meu instante derradeiro
só então, mais do que eu,
tu morrerás
em mim.

Carlito Azevedo



Menino

A pérola
fria
o topázio
quente
dividiam seu
rosto ao meio:
olhos de gato,
olhar de gamo

Estragado

No jardim zoológico
um ganso

as patas afundam na lama
e ele imperial
como uma macieira em flor

mas está estragado
como qualquer um pode ver
estragado

pensa que foi para isso
que o resgataram do dilúvio

mas não
resgataram o signo
estragaram o ganso

Banhista

Apenas
em frente
ao mar
um dia de verão -
quando tua voz
acesa percorresse,
consumindo-o,
o pavio de um verso
até sua última
sílaba inflamável -
quando o súbito
atrito de um nome
em tua memória te
incendiasse os cabelos -
(e sobre tua pele
de fogo a
brisa fizesse
rasgaduras
de água)

Limiar

A via-láctea se despenteia.
Os corpos se gastam contra a luz.
Sem artifícios, a pedra
acende sua mancha sobre a praia.
Do lixo da esquina partiu
o último vôo da varejeira
contra um século convulsivo.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Antonio Carvajal



Prêmio Nacional de Poesia de 2012 concedido pelo Ministério da Educação, Cultura e Esportes da Espanha

Correspondencia

Fosa común de pájaros y fuentes
eran tus ojos en la tarde ardida.
Había un brillo cruel de luz mordida
en tus labios sin besos y en tus dientes.

Ayer dos corazones coincidentes,
hoy dos bordes sangrantes de una herida,
mañana doble sombra de guarida
de sierpes y de lobos impacientes.

Tú, aquí; él, por ahí: Porque no es buena
la vida, no: No es justa y no es sagrada
para quien muerde el fruto de la ciencia.

Esa ciencia que nace de la pena
de no verse mirada en su mirada,
pedir amor y recibir paciencia.

Idillo

Dicen todos: Ellos son,
ellos cantan, ellos miran
la aurora de las acequias,
el ruiseñor que origina
tristezas de amor, extrañas
y suaves melancolías.
¡Cuánta flor han deshojado,
cuánta mirada cautiva,
cuánto encaje de hilo limpio,
cuánto beso sobre el día
que como un pozo de brasas
se enciende y los aniquila!
...no son ellos; ya no son
más que tórtola en la encina,
más que el agua del venero,
más que la flor de alegría,
más que una vara de nardos
llameante a maravilla,
el torso bello y desnudo,
la boca que les destila
ámbares, rosas, jazmines
y una palabra no dicha,
palabra sola que son,
amor, amor... Y la brisa
los lleva, blancos y puros,
los lleva a las altas cimas,
los lleva a las luces ebrias,
hacia las estrellas fijas…

Pasión

Con estos mismos labios que ha de comer la tierra,
te beso limpiamente los mínimos cabellos
que hacen anillos de ébano, minúsculos y bellos,
en tu cuello, lo mismo que el pinar en la sierra.
Te muerdo con los dientes, te hiero en esta guerra
de amor en que enloquezco. Sangras. Y pongo sellos
a las heridas tibias, con besos, besos....Ellos
que han de quedar comidos, mordidos por la tierra.
Tal ímpetu me come las entrañas, que sorbo
tu carne palmo a palmo, cerco de llama el sexo,
te devoro a caricias, y a besos, y a mordiscos.
Ni la muerte, ni el ansia, ni el tiempo son estorbo.
El abrazo es lo mismo si cóncavo o convexo,
y yo soy un cordero que trisca en tus apriscos.

Tigres en el Jardín

Como un ascua de odio te hemos visto en la aurora,
como un trigal de cielo derramado en la vega,
y hemos sorbido el agua que tu contacto dora
y ese aroma de rosas que nos cerca y anega.
En este huerto el lirio es feliz. Sólo implora
libertad nuestra sangre, mientras la nube llega,
se riza y, leve, pasa. Da el chamariz la hora,
y el gozo de la sombra, como un rencor, nos niega.
Solos entre las dalias, entre cedros y fuentes,
tanto nos asediamos que nos cala hasta el hueso
este amor sin futuro y esta luz de los dientes.
Tigres somos de un fuego siempre vivo e ileso,
y te odiamos por libre, recio sol, mientras puentes
de plata ha levantado la muerte a nuestro beso.

Zila Mamede

 
Trigal


Por entre noite e noite, essas veredas
para os trigais maduros me acenando.
Despertam-se campinas, precipitam-se
as invenções da luz na ventania.

Por entre lua e lua, essa querência
- um resmungar de espigas conscientes
do retorno às searas, que ceifeiros
já descerraram olhos invernais.

Planície enlourecendo se oferece
e um mar desenha nos pendões crescentes.
Ceifeiros - seus marujos sem navios -

pescam sementes, riscam no amarelo
a saudade dos peixes inascidos
nesse (não mar das águas) mar de pão.

Soneto da Espera

O verde obstinara-se em teus braços
em mim compôs apenas superfície
de tempo, de que és vértice: nasceste
na tessitura frágil das lembranças.

Carregados teus pés se justapõem
às andanças, maduros de certezas
que tuas mãos colheram, na visão
das auroras caídas sobre a mesa.

Verde, esse teu aliciando ventos
sugere uma esperança vespertina
entre os vãos paralelos das estrelas.

Comigo - claro escuro - o tempo estaca
se verde o sol me abriga, definindo-te
cada vez mais tranqüilo de mistérios.

Lagoa do Bonfim

À visão da lagoa quieta
uma paz de superfície desabrocha
que a lagoa repousa,
profunda.

As águas conservando
nas entranhas
um último segredo
de afogados,

prematuros desesperos
de afogados,
silenciosas tragédias
de afogados.

Tardias horas:
o repouso da lagoa se embrutece
e as maretas conversam,

e as andanças dos ventos da lagoa
decifram pensamentos e segredos
de afogados.

Falanges de fantasmas suicidas
dispersam o súbito murmúrio da lagoa
que é o seu próprio mistério.

Novamente a tranqüila,
novamente a transparente face da lagoa
se mostra:
e dos mortos aquáticos
o segredo permanece
puro.

Corpo a Corpo

Pasto branco
potro bravo
corpo a corpo
corre o certo
tempo incerto
de um corisco

Pasto e cobra
rosto franco
na empreitada:
febre e fogo
nesse jogo
de encontrar-se

Pasto e potro
rasto e sono
em breve trato:
rosto acorda
laço e corda
desatados

Pasto grave
tenso rosto:
cobra-cobra
se consome
na empreitada
re-presada

Pasto franco
rosto breve
fogo e risco
fome e riso
no improviso
desse jogo

Pasto bravo
potro branco
corpo a corpo:
na campina
o potro: a crina
engalanada.
 

segunda-feira, 5 de novembro de 2012