Peliano costuma brincar que a poes-ia e foram os poetas que a trouxeram de volta! Uma de suas invenções mais ricas é conseguir por em palavras lirismos maravilhosos, aqueles que percebemos de repente e temos a impressão que não vamos conseguir exprimi-los. Exemplos: de Manoel de Barros -"Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura. De tarde o deserto já estava em nós"; de Ernesto Sabato - "Sólo quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para ... recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido"; de Thiago de Mello - "Faz escuro mas eu canto"; de Helen Keller - "Nunca se deve engatinhar quando o impulso é voar"; de Millôr Fernandes - "Sim, do mundo nada se leva. Mas é formidável ter uma porção de coisas a que dizer adeus". É como teria exclamado Michelangelo que não fora ele quem esculpiu Davi, pois este já estava pronto dentro da pedra, Michelangelo apenas tirara-o de lá. Então, para Peliano, o lirismo é quando nos abraça o mundo fora de nós, cochicha seu mistério em nossos ouvidos e o pegamos com as mãos da poesia em seus muitos dedos de expressão.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Reynaldo Jardim

Receituário

De que fel preparava
as porções que servia?
O papel que rasgava
era eu que escrevia?
De que erva era o chá
que o bule fervia?
De que águas o mar
que cortava de fria?
De que sal o tempero
que azedava o meu dia?
De que fogo o luar
que furioso latia?
De que medos a tarde
mastigava e mordia?
De que arte marcial
o furor apreendia?
De que livro infernal
as lições consumia?
De que bem, de que mal
se chorava, se ria?
De que torvo quintal
suas flores colhia?

Desamores

Quero me despojar
de tudo o que não tenho.
Limpar meus horizontes
de artes e de engenho.
Quero me desfazer
de tudo o que não tive.
A certeza certeira
de quem viveu não vive.
Quero me entristecer
de alegria e calma.
Olhar no espelho e ver
a cara de minha alma.
E quero dessofrer
o que nunca sofri.
O gosto do prazer:
sumo de sapoti.

Não somos um

Não lhe direi o impossível,
a verdade alastrou-me:
o seu valor equivale
à densidade dos outros.
Não somos um. Que outrora
éramos um, ou pensamos
sermos eu, você, o outro,
três elementos distintos.
Cada movimento teu
altera, sem restrição,
o passo próximo dado
pelo seu pai ou amigo.
A função é coligada,
contínua, una, solúvel,
se arrebentarmos todos,
você se dissolverá.
Calarei o impossível
a multidão alastrou-me.
O meu valor equivale
à conjunta redenção.

A coisa útil

Um fruto (ou mesmo o pão)
é útil à proporção que alimenta.
A couve-flor (ou mesmo o ar)
é bela porque germina.
Assim o trigo e o canavial,
o café e o porto,
a mulher e o tempo.
Sementes de gordos horizontes.
Comei deste poema
um gomo ou a laranja integral.
O pó não alimenta,
mas na terra o pasto viceja.
No pensamento vazio nada vive,
mas onde houver substância,
ali o alimento existe.
Mastigai o poema,
com casca, polpa, germens, ácidos.
Os resíduos seguirão o doloroso fim.
A seiva enriquecerá teu plasma sanguíneo:
em ferro e iodo,
em sol e tempo
e horizontes palpáveis.
Uma fruta (ou mesmo a harmonia),
o agrião, as greves e as alfaces,
- palavras indigestas à poesia…
No entanto, o nutritivo poema se fermenta
e sobre cidades, soldado, fábrica, menino,
explica a anemia,
nutre a revolução.

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