Peliano costuma brincar que a poes-ia e foram os poetas que a trouxeram de volta! Uma de suas invenções mais ricas é conseguir por em palavras lirismos maravilhosos, aqueles que percebemos de repente e temos a impressão que não vamos conseguir exprimi-los. Exemplos: de Manoel de Barros -"Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura. De tarde o deserto já estava em nós"; de Ernesto Sabato - "Sólo quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para ... recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido"; de Thiago de Mello - "Faz escuro mas eu canto"; de Helen Keller - "Nunca se deve engatinhar quando o impulso é voar"; de Millôr Fernandes - "Sim, do mundo nada se leva. Mas é formidável ter uma porção de coisas a que dizer adeus". É como teria exclamado Michelangelo que não fora ele quem esculpiu Davi, pois este já estava pronto dentro da pedra, Michelangelo apenas tirara-o de lá. Então, para Peliano, o lirismo é quando nos abraça o mundo fora de nós, cochicha seu mistério em nossos ouvidos e o pegamos com as mãos da poesia em seus muitos dedos de expressão.

sábado, 19 de maio de 2012

Ronaldo Costa Fernandes

Beira-mar

O menino olha extasiado a maré encolher-se.
O que era água agora é lamaçal cinza
e os homens bonecos de barro sem pernas
caranguejam atrás de sua imagem e semelhança
– e alguma lata de conserva
que se finge de baiacu de alumínio.
O menino vê o Rio Anil ser engolido pela maré.
Para onde foi tanta água?
O menino também é uma maré vazia perplexidade
vento soprando mangue maré vagueza.
O mangue esponja em seu bolo fecal.
Tarde, tarde, o menino olha a tarde,
o fenômeno é reversível,
maré retrátil,
ele sabe que, como a vida,
amanhã voltará a acontecer.

O rosto

Na sombra, os rostos têm todas as feições
porque nela cabe a imaginação
cuja cara é uma deusa sem rosto.

Por isso te vejo em todas as sombras —
sombras do quarto e da noite.
Por isso estás também
em minha mente
que vive em permanente sombra.

A arte do corpo

Numa dessas Bienais de São Paulo,
vi de longe, sozinho, passarinho,
o poeta Mário Quintana.

Durante anos a imagem – peixe azul – me perseguiu.
Por fim, entendi a recorrência:

Mário Quintana era móbile,
magra body-art,
andar performático,
existência conceitual,
em seus parangolés de ossos e calvícies,
em sua lígias & papes
de velho movido a arame,
seu corpo virtual,
ali, entre os cimentos desarmados do Ibirapuera.

O tempo

O tempo e sua matéria
a máquina dos meus humores
tão rica e mineral
enquanto lá fora
a sonata dos desatinos
orquestra o boi que se estende no varal.

O tempo e sua miséria,
deus negro que não encontra o sono.

O tempo e sua morfologia
feita de nada e de tudo
como alguém que anda
com os calcanhares para a frente.

O tempo e sua bílis negra,
atrabiliário e perverso,
monstro do Loch Ness,
ó profundeza feita de vazio.

O tempo e sua caixa de música
o lugar dos sons prisioneiros
que se escuta é o silêncio das horas
lambendo o ar rarefeito.

O tempo – animal que não envelhece,
nós é que passamos por ele
como alguém que acena de um ônibus
para a imobilidade saudosa
de um bar à beira da estrada.

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