Talvez o vento saiba
Talvez o vento saiba dos meus passos,
das sendas que os meus pés já não abordam,
das ondas cujas cristas não
transbordam
senão o sal que escorre dos meus braços.
As sereias que ouvi
não mais acordam
à cálida pressão dos meus abraços,
e o que a infância
teceu entre sargaços
as agulhas do tempo já não bordam.
Só vejo
sobre a areia vagos traços
de tudo o que meus olhos mal recordam
e os
dentes, por inúteis, não concordam
sequer em mastigar como bagaços.
Talvez se lembre o vento desses laços
que a dura mão de Deus fez em
pedaços.
Esse punhado de ossosA Moacyr
Félix
Esse punhado de ossos que, na areia,
alveja e
estala à luz do sol a pino
moveu-se outrora, esguio e bailarino,
como se
move o sangue numa veia.
Moveu-se em vão, talvez, porque o destino
lhe
foi hostil e, astuto, em sua teia
bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia
o que havia de raro
adunco do assassino,
nas úlceras do mendigo,
na voz melíflua do bispo,
no martírio dos suicidas,
na mão crispada
das vítimas,
na forca e na Guilhotina,
no sangue sobre o patíbulo,
no
sexo do hermafrodita,
no ventre da meretriz
que deu à luz uma harpia,
nas bestas do Apocalipse,
no selo que foi rompido,
nas trombetas do
Juízo,
no êxtase mudo dos místicos,
na agonia dos epígonos,
no corvo
que bica as vísceras
de alguém cujo sacrifício
vale tanto quanto a
epígrafe
de uma página vazia.
Paz, enfim, até no ríctus
que torce a
boca do Cristo.
Hoje
A sensação oca de que tudo acabou
o pânico impresso na face dos nervos
o solitário inverno da carne
a lágrima, a doce lágrima impossível...
e a chuva soluçando devagar
sobre o esqueleto tortuoso das árvores
E se eu disser
E se eu disser que te amo - assim, de cara,
sem mais delonga ou tímidos rodeios,
sem nem saber se a confissão te
enfara
ou se te apraz o emprego de tais meios?
E se eu disser que sonho
com teus seios,
teu ventre, tuas coxas, tua clara
maneira de sorrir, os
lábios cheios
da luz que escorre de uma estrela rara?
E se eu disser que
à noite não consigo
sequer adormecer porque me agarro
à imagem que de ti
em vão persigo?
Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro
em tua
ausência - essa lâmina exata
que me penetra e fere e sangra e mata.