Peliano costuma brincar que a poes-ia e foram os poetas que a trouxeram de volta! Uma de suas invenções mais ricas é conseguir por em palavras lirismos maravilhosos, aqueles que percebemos de repente e temos a impressão que não vamos conseguir exprimi-los. Exemplos: de Manoel de Barros -"Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura. De tarde o deserto já estava em nós"; de Ernesto Sabato - "Sólo quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para ... recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido"; de Thiago de Mello - "Faz escuro mas eu canto"; de Helen Keller - "Nunca se deve engatinhar quando o impulso é voar"; de Millôr Fernandes - "Sim, do mundo nada se leva. Mas é formidável ter uma porção de coisas a que dizer adeus". É como teria exclamado Michelangelo que não fora ele quem esculpiu Davi, pois este já estava pronto dentro da pedra, Michelangelo apenas tirara-o de lá. Então, para Peliano, o lirismo é quando nos abraça o mundo fora de nós, cochicha seu mistério em nossos ouvidos e o pegamos com as mãos da poesia em seus muitos dedos de expressão.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Pio Vargas


Despertáculo

Es­tou pron­to
pa­ra a guer­ra que en­con­tro
quan­do acor­do:
bo­tei vi­gia nos sen­ti­dos
e ilu­di com com­pri­mi­dos
ou­tros se­res a meu bor­do.
Aban­do­nei o ví­cio
de es­tar sem­pre
a so­le­trar ru­í­nas,
dei li­ber­da­de a meus de­ten­tos
mi­nha pres­sa di­lu­iu nos pas­sos len­tos
e ras­guei
meu ca­len­dá­rio de ro­ti­nas.
In­ver­ti a or­dem.
Já não saio por aí
a de­vo­rar com­pro­mis­sos,
to­mei pos­se no go­ver­no de mim mes­mo
e der­ro­tei os meus omis­sos.
Ven­ci a ba­ta­lhas
de ter que es­tar sem­pre por per­to,
às ve­zes voo pa­ra den­tro
do meu so­nho a céu aber­to.
Es­tou pron­to:
eu já con­cor­do
com a guer­ra que en­con­tro
quan­do acor­do.


Os sons do ofício

É porque recolho o vário
no aviário das vértebras
e me há um silo de células
e me há um quase-aquário,
que o poema se me chega,
estuário.
Que me importa
a sina jugular das fases,
a vida conjugal das frases
e o semblante cínico
das fezes,
se não faço poemas
como quem defende teses.
Faço poemas
para que passem os dias
e pascem os rebanhos
e os oceanos pasmem
ante o naufrágio
de todas as datas
no calendário-lanho.
Ou seja, faço-os
como quem viceja
os laços do arremesso
como quem vislumbra
silêncio nos entulhos
e aprendeu a estrutura ideal
para montar barulhos
sob a língua mais banal.
Faço-os
como quem lambe oásis no planalto,
deixado pelas bases
de um simples sobressalto.
É como se o ego
coubesse inteiro
na determinação de um prego
que me fixa exílios sob a carne
mas que também aciona
os gatilhos do alarme.


Poema 999 (ou: concepção tumular pra que ninguém alegue ignorância):

Quando eu morrer
escrevam no meu túmulo:
aqui dorme pio
que era poeta nas horas vagas.
O que distanciou de tudo
pra continuar mudo
com suas amarras

Aqui dorme alguém
que era de todos
e pertenceu a ninguém
que imaginava muito
mas só tinha um corpo
que casualmente se tem
que fazia poemas
só para esquecer os dilemas
do que era um e quis ser cem.

Pensando bem
escrevam mais:
aqui dorme pio
o que em sendo um
foi quase mil.


Velho

acho que valho
a idade dos espelhos
o tempero dos sais
a metafísica do cais
e mais
um aviário de naus
que pediu concordatas
e passou pelas datas
usuário do caos.


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