Peliano costuma brincar que a poes-ia e foram os poetas que a trouxeram de volta! Uma de suas invenções mais ricas é conseguir por em palavras lirismos maravilhosos, aqueles que percebemos de repente e temos a impressão que não vamos conseguir exprimi-los. Exemplos: de Manoel de Barros -"Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura. De tarde o deserto já estava em nós"; de Ernesto Sabato - "Sólo quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para ... recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido"; de Thiago de Mello - "Faz escuro mas eu canto"; de Helen Keller - "Nunca se deve engatinhar quando o impulso é voar"; de Millôr Fernandes - "Sim, do mundo nada se leva. Mas é formidável ter uma porção de coisas a que dizer adeus". É como teria exclamado Michelangelo que não fora ele quem esculpiu Davi, pois este já estava pronto dentro da pedra, Michelangelo apenas tirara-o de lá. Então, para Peliano, o lirismo é quando nos abraça o mundo fora de nós, cochicha seu mistério em nossos ouvidos e o pegamos com as mãos da poesia em seus muitos dedos de expressão.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Betty Vidigal

Vestido

O que escondo no bolso do vestido
não é para ser visto por qualquer
um que ambicione compreender
ou que às vezes cobice esta mulher.

O que guardo no bolso do vestido
e que escondo assim, ciumentamente,
é como um terço de vidro
de contas incandescentes
que se toca com as pontas dos dedos
nos momentos de perigo,
para afastar o medo;

é como um rosário antigo
que um fiel fecha na palma da mão
para fazer fugir a tentação
quando um terremoto lhe ameaça a fé:

Jesus, Maria, José,

que meu micro-vestido esvoaçante
não vos ofenda em vão os olhos castos;
que minhas sandálias de prata
não me falhem nos instantes de cansaço;
que a tiara de princesa que não uso
não se perca entre os dedos dos incautos,
os sonhos dos reclusos;
que eu nunca quebre um salto;
que não me falta jamais um parafuso
(não que se note);
que com sorte, cautela e canja
eu um dia me transforme numa anja
e lá do alto
repique os sinos para congregar os loucos, os aflitos,
os que vos chamam aos gritos,
os que nunca têm respostas.

Mas que mantenha nos bolsos,
mas que mantenha nos olhos
um breve contra os olhados
bons e maus;
que continuem assim os meus vestidos:
precipitados nas costas,
bem curtos, desaforados,
mal-comportados, bonitos.

O que inda escondo nos bolsos
e murmuro nos instantes adversos
é um verso medieval
escrito às pressas
em dialeto provençal, é claro,
por um bardo meio analfabeto
com caracteres rabiscados, inseguros;
é uma bola de cristal
que não deixa prever o futuro;
é uma invocação, um cântico,
escapulário,
um patuá romântico
cheio de pétalas azuis,

– para me proteger das bruxas que não fui;
dos passes
que jamais permiti que me encantassem;
da maldição
que não veio dos meus sins, mas sim de um não
– de um único não,
uma bobagem,
que não daria jamais
um furo de reportagem.

Pitangas

Era uma febre, um delírio,
Uma mandinga bem feita,
cama com cheiro de lírio.

Era um delírio, uma febre,
amor que não se endireita,
quebranto que ninguém quebra,
tremedeira de maleita,
uma mulher e um ébrio
de amor que não toma jeito.
E ela, que não se emenda?

Meus dedos fazendo renda
com os pêlos do seu peito;
o coração que se escuta
pelo quarteirão inteiro;
pitangas no travesseiro,
cama com cheiro de fruta.

O amor dos outros

O amor dos outros
é indiferente.
Só o da gente
é especial,
fosforescente,
brilha no escuro.

O amor dos outros
é tão pequeno,
nem vale a pena
pichar o muro.

Ninguém entende
o amor alheio;
não é bonito
e não é feio.
O amor dos outros
é tão efêmero!
Estão amando?
Fazendo gênero?

O amor dos outros
é muito pouco:
só o da gente,
direito ou torto,
alegre ou triste,
sereno ou louco,
lascivo ou puro,
céu ou inferno
— só o da gente
será eterno.

Olha pro rosto
do amor alheio:
são só dois olhos,
nariz no meio,
cadê a boca?
Olha pra cara
do amor da gente:
que coisa louca!

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