Peliano costuma brincar que a poes-ia e foram os poetas que a trouxeram de volta! Uma de suas invenções mais ricas é conseguir por em palavras lirismos maravilhosos, aqueles que percebemos de repente e temos a impressão que não vamos conseguir exprimi-los. Exemplos: de Manoel de Barros -"Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura. De tarde o deserto já estava em nós"; de Ernesto Sabato - "Sólo quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para ... recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido"; de Thiago de Mello - "Faz escuro mas eu canto"; de Helen Keller - "Nunca se deve engatinhar quando o impulso é voar"; de Millôr Fernandes - "Sim, do mundo nada se leva. Mas é formidável ter uma porção de coisas a que dizer adeus". É como teria exclamado Michelangelo que não fora ele quem esculpiu Davi, pois este já estava pronto dentro da pedra, Michelangelo apenas tirara-o de lá. Então, para Peliano, o lirismo é quando nos abraça o mundo fora de nós, cochicha seu mistério em nossos ouvidos e o pegamos com as mãos da poesia em seus muitos dedos de expressão.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Francisco Carvalho

Fosso

O povo fala grosso
mas não segue adiante
porque tem um fosso.

O povo mostra o rosto
mas não pode ser visto
porque tem um fosso.

O povo não tem sobrosso
mas é expulso da festa
porque tem um fosso.

O povo paga imposto
mas fica à margem do rio
porque tem um fosso.

Fosse de que modo fosse
a vida não mudaria
porque tem um fosso.

A fome mostra o seu dorso
mas não prova do manjar
porque tem um fosso.

Espectros de pele e osso
contai vossa fome ao vento
porque tem um fosso.

Lavoura

As minhas mãos
já foram robustas
já plantaram
sementes de milho
nas terras dos filisteus
hoje só semeiam
as lavouras do adeus.

Adágio para um tigre

Quando ele passeia pela floresta
os astros se escondem em seus casulos
de cristal e as ramagens genuflexas
derramam no ar gorjeios de alaúdes.

O tigre escuta o cântico das árvores
seduzidas pela flauta de Pã.
Seus olhos, dançarinos entre as flores
querem dormir ao sol de Aldebarã.

A noite arrasta o seu manto de búzios
sobre os pântanos coroados de chamas.
O tigre é um deus que sai de seus refúgios
para comer os brolhos das semanas.

O vento apaga as lâmpadas dos charcos
volta a zumbir nas veias dos cipós.
O tigre escreve a lenda de seus passos.
Em seu rumor canta secreta voz.

As horas passam, suas vestes longas
tocam de leve as harpas das clareiras.
O andar do tigre e o espírito das sombras
são dois impulsos para as profundezas.

Poema para escrever no asfalto

Agora eu sei o quanto basta à ceia do coração
e o quanto sobra do naufrágio
das nossas utopias.

Agora eu sei o que significa a fala dos mortos
e esta parábola soterrada
que jorra das veias da pedra.

Agora eu sei o quanto custa o ouro das palavras
e este pacto de sangue
com as metáforas do tempo.

Agora eu sei o que se passa no coração de treva
e do homem que morre mendigando
a própria liberdade.

Agora eu sei que o pão da terra nunca foi repartido
com a nossa pobreza
e com a solidão de ninguém.

Agora eu sei que é preciso agarrar a vida
como se fosse a última dádiva
colocada em nossas mãos.

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