Peliano costuma brincar que a poes-ia e foram os poetas que a trouxeram de volta! Uma de suas invenções mais ricas é conseguir por em palavras lirismos maravilhosos, aqueles que percebemos de repente e temos a impressão que não vamos conseguir exprimi-los. Exemplos: de Manoel de Barros -"Deixamos Bernardo de manhã em sua sepultura. De tarde o deserto já estava em nós"; de Ernesto Sabato - "Sólo quienes sean capaces de encarnar la utopía serán aptos para ... recuperar cuanto de humanidad hayamos perdido"; de Thiago de Mello - "Faz escuro mas eu canto"; de Helen Keller - "Nunca se deve engatinhar quando o impulso é voar"; de Millôr Fernandes - "Sim, do mundo nada se leva. Mas é formidável ter uma porção de coisas a que dizer adeus". É como teria exclamado Michelangelo que não fora ele quem esculpiu Davi, pois este já estava pronto dentro da pedra, Michelangelo apenas tirara-o de lá. Então, para Peliano, o lirismo é quando nos abraça o mundo fora de nós, cochicha seu mistério em nossos ouvidos e o pegamos com as mãos da poesia em seus muitos dedos de expressão.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Claudio Willer

Poemas para ler em voz alta

1

EROS
viajantes inertes
imersos no silêncio dessas horas
quando o tempo não é mais tempo
porém lassidão
e nossos corpos arquejantes construções
envoltas em nudez
testemunhada apenas pelos objetos da casa, os quadros na parede, os pesados móveis, os livros e suas lombadas, vasos de plantas, espelhos, e mais a negra silhueta dos prédios recortados contra a janela
rosto cego da cidade agora adormecida a observar-nos fixamente
eu bruxo, você sibila
que deuses cultuamos?
parados na pausa entre sobressaltos
que alquimia inventamos?
o peso que nos paralisa e adormece
não é cansaço
porém outra coisa
sensação do profundo
o obscuro sentir
do mundo que respira
pelos poros da escuridão
e nós, manietados pelo prazer, apenas conscientes
da presença dos objetos da casa, móveis, vasos de plantas, livros, almofadões
espalhados pelo chão, nossas roupas jogadas ao acaso, mais o negro recorte dos prédios
por trás da janela,
perfil da paisagem urbana, impassível testemunha
mal sabemos quem somos
lembramo-nos apenas dos nossos nomes
restam-nos o repouso e uma intuição
desperta para o morno mundo de nossos corpos
nunca, nunca havia sentido isso antes assim

2

quando o calor da noite de verão
e a chuva da noite de verão
se encontram
e são a mesma torrente de vida a escorrer por nossas artérias
então
reconhecemo-nos pelas carícias
um arco-íris pode sentar-se à cabeceira da cama
uma nuvem pode servir de cobertor
uma paisagem de sol nascente
em uma praia pontilhada de tendas de campistas
reflete-se no lago luminoso do seu ventre
a montanha e sua encosta recoberta de matagais
onde certa vez nos perdemos entre nascentes de rios
projetam sua sombra em suas coxas
planícies batidas pelo vento alísio
que atravessa o continente, o universo
são nossa imaginação febril

3

a colcha era verde
e a lâmpada azulada
costumavam ouvir músicas lentas e suaves
achavam que a estante repleta de livros tinha um ar solene
e gostavam disso
de qualquer coisa
que sugerisse um ambiente sobrenatural
eram rápidos, muito rápidos em seus jogos intelectuais
serviam-se em taças transbordantes, borbulhantes
e tudo era praticado com uma certa indiferença
com a naturalidade de há tanto tempo
termos nos habituado a estar juntos, a ficar nus, a beijar-nos na boca
deitar-nos sobre a colcha verde do sofá, à luz azul da lâmpada
ao lado da estante de livros compondo um clima de ritual
sugestão de coisa esotérica
decerto olhavam-se
e ficavam de voltar a encontrar-se outro dia
(as noite passavam depressa)

4

nossos hábitos delicados e perversos
nossas diversões meio delinquenciais, meio filosóficas
nossos prazeres íntimos e raros
as conversas irisadas de memória
gestos aos poucos entretecendo-se
na plenitude da nudez familiar
enquanto íamos nos transformando
nos pulsantes personagens crepusculares
de nossas narrativas
rodeados por um silêncio vivo, um tempo latejante
da noite percorrida
para não chegar a lugar algum
durante o dia
éramos simples mortais

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